Segunda é o dia em que reato meu pacto com a vida. Não é um gesto solene, é quase um sussurro. Acordo sempre meia hora antes do que preciso. Não por heroísmo, mas por necessidade íntima. Preciso desses minutos em que ninguém ainda me exige, para existir em silêncio, sem tarefa, sem performance. Tomo esse […]
MEMÓRIAS | A escada que não levava a lugar nenhum ou Feliz aniversário, Wanderléa
Cresci num território de vozes femininas — duas irmãs de sangue, as amigas delas, as primas, as tias e muitas mulheres que entravam sem bater, ocupavam a sala e faziam do nosso quintal um palco. Embora houvesse quatro irmãos, quem regia a partitura doméstica eram elas. Decidiam o que comer, as tarefas, até o tom […]
SAUDADES | A orquestra invisível da casa amarela
Cresci espremido entre o saxofone das cigarras e o silêncio comprido do interior do Paraná. Ribeirão Claro, cidade tão pequena que o vento, bondosamente, todos os dias, beijava as esquinas antes de ir dormir. Era pobre: quinto de seis filhos, sempre um prato repartido e um sonho racionado. Nosso pai, José, pedreiro que erguia paredes […]
TEMPO | Um relógio que late antes do sol
Sei que existem pessoas que acordam com o canto do galo. Eu desperto com o latido da responsabilidade que atende pelo nome de Guadalupe. Desde que a pequena, uma mini-golden com pretensões de gerente de fábrica, entrou em cena, meu despertador toca às 6h30, mas é Lupita quem assina o ponto. Basta o primeiro tilintar […]
NAS ALTURAS | Laboratório de afetos
Passei a infância suspenso numa geografia frondosa — cartógrafo mirim que desenhava o mundo não em cadernos, mas na altitude dos galhos. No quintal de casa, um abacateiro ancião nos emprestava a copa como varanda. Ali, eu lia e fazia lições de matemática enquanto formigas cruzavam o caderno e os livros. Meu primeiro grande projeto […]
DESPEDIDA | O Ensaio Invisível das Despedidas
Eu estava passeando pelo Instagram da Cléo De Páris quando me deparei com um post dela com a frase “a vida não avisa quando algo está acontecendo pela última vez.” Então eu pensei nos gestos que acontecem como sussurros fora de um roteiro preestabelecido e que só iremos saber que era cena final quando a luz já se apagou. Porque se […]
REMINICÊNCIAS | Aquela quinta-feira em que o centro virou camarim
Costumamos dizer que teatro em boa companhia dispensa convite. Basta um aceno e já estamos a caminho. Ontem foi a vez de cruzar o centro com Vanessa Bumagny, partindo da Praça Roosevelt antes de o relógio marcar seis. Optamos pelo trajeto a pé, pelo prazer de colher as camadas da cidade — fachadas art déco, […]
UM SONHO | O que resiste, mesmo quando tudo se afoga
Há sonhos que não vêm para ser decifrados — vêm para ser habitados. Como se o inconsciente, esse arquiteto sem licença nem pudor, montasse cidades líquidas onde a lógica se dissolve feito tinta na água. Foi assim, navegando por um país sem nome — talvez asiático, talvez apenas inventado — que reencontrei Bia. E Guadalupe, […]
SONHEI COM A MINHA MÃE | Roteiro Para Abraçar a Ternura ou Eu, Jardineiro de Ausências
A noite decidiu montar um espetáculo na minha cabeça e, como sempre, distribuiu os papéis sem avisar o elenco. Lá estou eu – Ribeirão Claro ao fundo, quimono de Phedra de Córdoba rodopiando, salto de tamanco quase tocando o halo da lua. De tão fiel, o sonho parecia reality show, mas com a cenografia dos […]
APRENDIZADO | Chatita, a menina com narizinho que cabia inteiro num sopro
Há vidas que cabem em linhas retas. A de Dona Rosário percorre galáxias elípticas. Sexta-feira, 86 voltas inteiras ao redor do sol, e ainda assim ela caminha como quem abre a primeira janela da manhã: devagar, mas sem jamais abdicar do assombro. Madrid foi o seu berço e, ironia de ferro e canções republicanas, também […]