Cresci espremido entre o saxofone das cigarras e o silêncio comprido do interior do Paraná. Ribeirão Claro, cidade tão pequena que o vento, bondosamente, todos os dias, beijava as esquinas antes de ir dormir. Era pobre: quinto de seis filhos, sempre um prato repartido e um sonho racionado. Nosso pai, José, pedreiro que erguia paredes […]
TEMPO | Um relógio que late antes do sol
Sei que existem pessoas que acordam com o canto do galo. Eu desperto com o latido da responsabilidade que atende pelo nome de Guadalupe. Desde que a pequena, uma mini-golden com pretensões de gerente de fábrica, entrou em cena, meu despertador toca às 6h30, mas é Lupita quem assina o ponto. Basta o primeiro tilintar […]
NAS ALTURAS | Laboratório de afetos
Passei a infância suspenso numa geografia frondosa — cartógrafo mirim que desenhava o mundo não em cadernos, mas na altitude dos galhos. No quintal de casa, um abacateiro ancião nos emprestava a copa como varanda. Ali, eu lia e fazia lições de matemática enquanto formigas cruzavam o caderno e os livros. Meu primeiro grande projeto […]
DESPEDIDA | O Ensaio Invisível das Despedidas
Eu estava passeando pelo Instagram da Cléo De Páris quando me deparei com um post dela com a frase “a vida não avisa quando algo está acontecendo pela última vez.” Então eu pensei nos gestos que acontecem como sussurros fora de um roteiro preestabelecido e que só iremos saber que era cena final quando a luz já se apagou. Porque se […]
REMINICÊNCIAS | Aquela quinta-feira em que o centro virou camarim
Costumamos dizer que teatro em boa companhia dispensa convite. Basta um aceno e já estamos a caminho. Ontem foi a vez de cruzar o centro com Vanessa Bumagny, partindo da Praça Roosevelt antes de o relógio marcar seis. Optamos pelo trajeto a pé, pelo prazer de colher as camadas da cidade — fachadas art déco, […]
UM SONHO | O que resiste, mesmo quando tudo se afoga
Há sonhos que não vêm para ser decifrados — vêm para ser habitados. Como se o inconsciente, esse arquiteto sem licença nem pudor, montasse cidades líquidas onde a lógica se dissolve feito tinta na água. Foi assim, navegando por um país sem nome — talvez asiático, talvez apenas inventado — que reencontrei Bia. E Guadalupe, […]
SONHEI COM A MINHA MÃE | Roteiro Para Abraçar a Ternura ou Eu, Jardineiro de Ausências
A noite decidiu montar um espetáculo na minha cabeça e, como sempre, distribuiu os papéis sem avisar o elenco. Lá estou eu – Ribeirão Claro ao fundo, quimono de Phedra de Córdoba rodopiando, salto de tamanco quase tocando o halo da lua. De tão fiel, o sonho parecia reality show, mas com a cenografia dos […]
APRENDIZADO | Chatita, a menina com narizinho que cabia inteiro num sopro
Há vidas que cabem em linhas retas. A de Dona Rosário percorre galáxias elípticas. Sexta-feira, 86 voltas inteiras ao redor do sol, e ainda assim ela caminha como quem abre a primeira janela da manhã: devagar, mas sem jamais abdicar do assombro. Madrid foi o seu berço e, ironia de ferro e canções republicanas, também […]
QUEM SABE ISSO QUER DIZER AMOR | Isildinha e o Manual da Onipresença — com humor e pipoca
Se houvesse uma escala Richter para medir a capacidade de multiplicar presenças, Isildinha Baptista Nogueira balançaria os sismógrafos já no bom-dia. Descobri isso num sábado glacial, cinco anos atrás, quando um Zoom entediado virou palco de assombro: lá estava ela, transformando a penumbra pandêmica da minha casa em Parelheiros num auditório de ideias em expansão. […]
RITUAL | Labirinto de Reprises
Todas às terças e quintas, às oito em ponto, eu aperto o botão do elevador como quem carimba a passagem para um território sem CEP. No bolso, o mesmo moleskine gasto. Na cabeça, o repetido pacto de silêncio que se assina antes de abrir a alma em consultório. Trinta e tantos anos depois da estreia […]