OPINIÃO | O Riso e a Linha que Não se Cruza

Desde sempre, existe um tipo de riso que estala como alívio e outro que estilhaça como ofensa. Sabemos que nem todo riso é libertador. Alguns servem de disfarce para violências já naturalizadas, como se o palco fosse uma trincheira e a gargalhada, munição. O caso do comediante Léo Lins, condenado a mais de oito anos por declarações que cruzaram perigosamente os limites do aceitável, escancara uma encruzilhada importante. Até onde vai a liberdade no humor?

Antes que alguém berre “censura!”, é preciso respirar fundo e entender o tempo em que vivemos. Ninguém está propondo um apagão criativo. O que está em jogo é outra coisa. O pacto social que exige, minimamente, que deixemos de rir da dor dos outros. Fazer piada com pedofilia? Com negros, gays, mulheres, pobres? Não cabe mais. E se ainda cabe, é porque ainda há quem, no fundo, acredite que certas existências continuam sendo piada.

A sentença pode parecer dura — e talvez seja. Oito anos e três meses não é pouco. Mas o que me parece simbólico, e digno de nota, é o gesto de uma juíza que ousou interromper o ciclo do escárnio. Num país onde os tribunais costumam ser lenientes com os que machucam em nome da liberdade de expressão, este caso marca uma virada. Que bom que essa discussão finalmente chegou. Porque o humor também precisa se olhar no espelho.

E nesse espelho há muitas imagens. Há quem corra para deslegitimar o stand up como arte — e aí me nego a acompanhar. Stand up é arte, sim, e das mais difíceis. Basta ver o trabalho sensível de tantos e tantas que, sozinhos no palco, conseguem traduzir o mundo em riso sem diminuir ninguém. Humor é instrumento de crítica, de desmonte, de afeto. Mas com o mínimo de respeito, é bom observar.

Não se trata de enrijecer a arte. Ao contrário: trata-se de ampliá-la. Porque quando excluímos, o riso murcha. Quando humilhamos, o riso sangra. E quando banalizamos a violência, o riso se converte em cúmplice.

Talvez o que esteja sendo julgado aqui não seja só um comediante, mas uma cultura inteira que aprendeu a rir pelas bordas, pelas rachaduras, esquecendo que por ali escorre a dignidade alheia. Chegou o tempo de repensar o que chamamos de “liberdade” quando essa liberdade é construída sobre a dor alheia.

Não se trata de um tribunal contra o humor, mas de um tribunal a favor do respeito. E que bom seria se esse novo tempo não fosse um tempo de silêncio, mas de reinvenção. Que o humor siga nos salvando — mas sem atravessar os limites da dignidade.

E viva a comédia. A que nos humaniza. A que escancara o absurdo sem perpetuá-lo. A que nos faz rir — não da queda do outro, mas do abismo que juntos decidimos não atravessar.

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
Post criado 1853

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