REFLEXÃO | Campos de conflito – A decolonialidade no centro da formação

Por Giovana Soar, Ivam Cabral e Jhonny Salaberg

A democratização da informação é uma das benesses oriundas de uma complexa somatória que envolve o desenvolvimento tecnológico dos últimos 50 anos, a intensificação da militância por justiça social e a busca por um conhecimento científico genuíno. Se até o século passado teorias racistas ainda encontravam respaldo em falsas conjunturas antropológicas ou biológicas, a razão contemporânea já tem múltiplas ferramentas para desmistificar tais equívocos.

É evidente que o aumento da disseminação da informação, causado sobretudo pela internet, não necessariamente resulta em conhecimento constituído, e notícias inautênticas ou teses anacrônicas e esdrúxulas continuam a circular por redes digitais ou bocas maliciosas, porém hoje temos, ao menos, o acesso e os dispositivos para rejeitá-las. Mitologias como as do Brasil descoberto ou embustes como a inferioridade étnica podem facilmente ser desconstruídos pela historiografia e pela biologia.

Nesse sentido, foram fundamentais as quebras de paradigmas causadas pelos estudos pós-coloniais e decoloniais, que com sucesso desmontaram a narrativa evolucionista eurocêntrica. Esse conjunto de teorias que analisa os efeitos políticos, filosóficos e artísticos deixados pelo colonialismo e as mudanças de perspectiva em relação aos povos outrora subalternizados é um fenômeno que ganhou potência a partir dos anos 1980, mas ainda era muito restrito aos círculos acadêmicos, pois a construção de novas epistemologias ainda estava apartada dos movimentos sociais. Se hoje, contudo, esses conhecimentos estão mais popularizados, ainda há muito a ser feito para que sua reverberação realmente alcance todos os cidadãos.

Assim, trazer Portugal como o país homenageado em 2022 no MIRADA – Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas não significa reforçar subserviências, mas justamente o contrário, porque representa uma oportunidade para o diálogo crítico sobre nossas origens, para que mais pessoas, aqui e lá, as conheçam de fato. Queremos criar campos de conflito construtivos entre essa homenagem e nossa história. A curadoria formativa do festival traz como desafio essa tentativa de decolonizar nossos pensamentos.

O momento histórico é mais que propício. Os feminismos, os movimentos pretos, as pautas LGBTQIAP+ e as lutas pelos direitos civis dos povos originários estão em evidência, e o que em certos períodos correspondia a engajamentos restritos hoje ecoa por nossa língua, nossos trajes e pela postura de uma imensa parcela da população jovem. As fortes ondas do reacionarismo, no entanto, sejam nas Américas ou na Europa, pautadas na mentira ou na recuperação de mal-entendidos científicos já superados, tentam conter os avanços civilizatórios, por isso precisamos nos manter firmes na defesa da democracia, da polifonia cultural como condição indispensável à prosperidade ética, cognitiva e econômica de nossos povos e da legitimidade das vozes antes silenciadas.

Brasileiros e portugueses mantêm há séculos uma relação de amor e ódio, admiração e desdém, desejo e repulsa. São sentimentos paradoxais que muitas vezes têm origem em preconceitos bobos. Enxergamos essa vontade imensa por afeto, mas ainda cheia de rancor.

Precisamos compreender o mundo para além da Europa. Por que nos chamamos América? Por que somos latino-americanos? De onde vem este nome, por que o adotamos e por qual razão ainda o utilizamos? Lembremos que, em 1988, a antropóloga Lélia Gonzalez já problematizava a homenagem – ao invasor Américo Vespúcio – que cunhou o nome de nosso continente, ao propor a categoria semântica e sociocultural da amefricanidade.

Diante disso, como podemos reabitar nosso mundo? De que maneira podemos decolonizar nosso idioma, nossa língua portuguesa? Como decolonizar nossos conceitos de beleza e saberes? Quem conta as histórias? As histórias contadas aqui, nesta edição do Mirada, nos representam? Que narrativas são essas?

Não se trata de revisionismo rancoroso, tampouco promover uma perseguição às reversas. Nosso intuito é descobrir outras e outros protagonistas para esses enredos –pois elas e eles são muitas e muitos – e colocar esses temas para dialogar com o público.

Atualmente, graças às mais diversas militâncias por equidade social, uso de uma linguagem inclusiva e liberdades individuais, tópicos que antes eram tabus ou circunscritos ao universo erudito, agora são debatidos nos pátios dos colégios, nos palcos Brasil afora, no bate-papo cotidiano. Todas as pessoas são capazes de aprender e ensinar algo. O povo português tem muito a aprender com o brasileiro e vice-versa.

Com maturidade intelectual, temos a chance, por meio de eventos como este, de sistematizar novos conhecimentos e fortalecer todas as nossas culturas e tradições que sejam dignas de serem preservadas de acordo com nosso próprio interesse. As histórias negativas da colonização, da escravidão e dos genocídios devem ficar, com finalidade pedagógica, à primeira vista em nossas prateleiras de livros: como fatos consumados, informações acessíveis para entendermos de onde viemos. Nossa prática, contudo, deve mirar o futuro para a construção coletiva de novas utopias.

FONTE: https://mirada.sescsp.org.br/institucional/

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