REFLEXÃO As cores do inconsciente

Ontem estive com minha mestra, Isildinha Baptista Nogueira, no XXVI Seminário da APP. O dia tinha uma delicadeza rara: pessoas instigantes, falas reveladoras, uma atmosfera que parecia suspender o tempo. Coube a mim a tarefa de apresentá-la e mediar sua fala com o público. Mas logo percebi: minha função era totalmente dispensável. Isildinha não precisa de mediações. Ela mesma escuta, recolhe, pensa e devolve com a lucidez de quem carrega o dom da palavra justa.

Falou sobre a cor do inconsciente – que não é uma, mas todas. E que, em cada caso, deve ser tratada com atenção e cuidado. Trouxe, ainda, a ferida exposta. A trama de significações que recobre o corpo negro. Disse que o corpo negro carrega a marca do indesejável, do inaceitável, sempre em contraste com o corpo branco, tornado parâmetro e medida. Acrescentou: a cor do amor é branca. Porque todas as imagens e narrativas do amor, ao longo da história da humanidade, têm corpos brancos no centro. O corpo negro não sabe do amor – não porque não ame, mas porque não foi amado historicamente. Uma dor funda, quase insuportável.

Na volta, no silêncio do Uber, Ella Fitzgerald cantava Night and Day. Entre uma lembrança e outra, Isildinha evocou Billie Holiday: “Como estas mulheres sofreram.” Concordei em silêncio. “Só agora entendo o porquê de tanto sofrimento”, completou. E ali, em sua voz calma, estava também o diagnóstico da psicologia social, que por tanto tempo não deu conta das camadas que atravessam nossos corpos, nossas histórias, nossas exclusões. Pensamentos que nos chegaram quase sempre filtrados por lentes europeias, brancas, higienizadas.

Lembrei de Franz Fanon, que desde os anos 1950 já desnudava essas feridas. Disse a ela que talvez Fanon não tivesse sido mais acolhido porque sua revolta se confundia com a incompreensão que sofria. “Não”, respondeu minha mestra, com firmeza doce. “Ele era triste. Falava de dentro da ferida colonial.”

Chegamos ao destino. E, como se o acaso conspirasse conosco, o carro se encheu da voz rasgada de Billie Holiday entoando I’m a Fool to Want You. Ali, entre notas melancólicas, compreendi. A cor da tristeza também habita o inconsciente – e talvez só seja possível reconhecê-la ao lado de quem nos ensina a ver o que ainda não sabemos nomear. E, quem sabe, a amar também. Mas esse saber, infelizmente, ainda nos escapa.

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
Post criado 1928

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