ARTAUD E A CRUELDADE

Tudo o que há no amor, no crime, na guerra ou na loucura nos deve ser devolvido pelo teatro, se ele pretende reencontrar sua necessidade.

É muito comum associarmos a palavra “crueldade” à obra de Artaud. Esse termo pode ser referido ao próprio deus Dioniso, como veremos posteriormente em Berthold. O cruel artaudiano é pré-Eurípides. Num tempo mitológico, quando as medidas apolíneas ainda não sufocavam a arte trágica, Dioniso encarnava-se nos protagonistas da tragédia grega.

A crueldade artaudiana inspira-se, portanto, num “Prometeu (que) teve que ser dilacerado pelos abutres; por causa de sua desmesurada sabedoria, que solucionou o enigma da Esfinge, Édipo teve que precipitar-se em um enredante turbilhão de crimes”.[1]

Artaud, quando usa o termo “crueldade”, fala, portanto, da crueldade metafísica. O teatro da crueldade a que se referiu é uma maneira de fazer uma crítica sobre a cultura do espetáculo.

Segundo Virmaux, ele só realizou o teatro da crueldade uma única vez: em uma conferência, a “Frente a frente” (1947), sua primeira aparição pública depois de sete anos internado. Nessa conferência estavam presentes: Neruda, Bataille, Gide e Sartre.

Artaud vai dizer que o teatro não se confina num palco, mas que pode se realizar em uma fábrica ou em uma conferência, por exemplo, e que pode se metamorfosear em qualquer situação.

Perdeu-se uma ideia do teatro. E, na medida em que o teatro se limita a nos fazer penetrar na intimidade de alguns fantoches e em que transforma o público em voyer, compreende-se que a elite se afaste dele e que o grosso da massa procure no cinema, no music hall ou no circo satisfações violentas, cujo teor não a decepciona.[2]

Trata-se de reelaborar o pensamento e quebrar uma linguagem formal. Normalmente o discurso está sempre armado e falta a confrontação com o interno, onde o pensamento titubeia. Há uma crueldade nesse pensamento, na confrontação com o nascimento da linguagem.

Tudo o que age é uma crueldade. É a partir dessa ideia de ação levada ao extremo que o teatro deve se renovar.[3]

A crueldade pode nascer de uma atitude interior e de uma experiência também ligada ao interno. E é isso que vai transformar o que Artaud chama de vida. Uma atitude de desarmamento, uma maneira de se lançar ao desconhecido.

Pela maneira de se lançar ao desconhecido, Artaud vai negar a ideia de cultura enquanto produção de consumo. Para ele, a cultura é uma questão social mais urgente. Assim, o artista fala a partir da dor de existir. Uma dor de fundo, esse é o impulso metafísico.

A crueldade também está ligada à interrupção: com o automatizado, com o discurso pronto. O interromper para abrir-se para outro espaço. Mas antes do analisar, do racionalizar. Assim, a crueldade de Artaud se liga contra a cultura analgésica.

Se pensarmos que o processo criativo aproxima-se sempre da angústia, e que, portanto, a criação está sempre ligada ao desconhecido, é fácil supor que existe uma cultura das sensações – do imaginário, do sensível –, não da cultura erudita. Dessa forma, Artaud propõe um teatro que vai do sensorial ao intuitivo – não físico, apenas.

Para Artaud, é o teatro que propõe outra forma de desenvolver o intelecto. Mas esse intelecto é no sentido de aprofundar a percepção das coisas. Como já dissemos, Artaud é inimigo do sistema do racionalismo.

Tudo o que há no amor, no crime, na guerra ou na loucura nos deve ser devolvido pelo teatro, se ele pretende reencontrar sua necessidade.[4]

Para a recuperação dessa “necessidade”, Artaud irá propor um teatro ritualístico. Porque, segundo ele, é “a partir dessa ideia de ação levada ao extremo que o teatro deve se renovar”.[5]

O ritual está ligado à existência e aproxima-se do teatro porque trabalha com o espaço circunscrito, com a dança, na relação com o outro.

É para apanhar a sensibilidade do espectador por todos os lados que preconizamos um espetáculo giratório que, em vez de fazer da cena e da sala dois mundos fechados, sem comunicação possível, difunda seus lampejos visuais e sonoros sobre toda a massa dos espectadores.[6]

Mas nesse rito artaudiano é necessária a ideia da crueldade como rigor. Porque espontaneidade e rigor são o mote do trabalho de Artaud. Grotowski irá dizer que essa foi a maior contribuição do mestre francês para o teatro moderno. Afinal, Artaud buscava sempre a eficácia da ação porque, segundo ele, o teatro é sempre uma forma de ação.

Mas crueldade também é determinação, mobilização total, ação que provém de uma necessidade absoluta. É também uma ação inteira que mobiliza corpo e afeto – o “ato total”, segundo a obra de Grotowski.

O grande tema do teatro artaudiano é a negação da repetição. Desde seus primeiros escritos ele se coloca contra a repetição. Para ele, o singular é o mais importante. E o estar agora – o instante – é que fará sempre a diferença.

Afinal, a crueldade também pode potencializar a singularidade – a questão do instante – porque ela está sempre acontecendo. Um estado de percepção que está ligado ao soltar-se, ao não se prender àquele momento que já se transforma em passado.


[1] Friedrich Nietzsche, O nascimento da tragédia, op. cit., p. 41.
[2] Antonin Artaud, O teatro e seu duplo, São Paulo, Martins Fontes, 1999, p. 95.
[3] Idem, p. 96.
[4] Idem, ibidem.
[5] Idem, ibidem.
[6] Idem, p. 97.

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
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