ANÁLISE | Realpolitik: ousado com simplicidade inacreditável  

“Realpolitik”, escrita por Daniela Pereira de Carvalho, mergulha o público em um universo onde números de relatórios empresariais se chocam violentamente contra a fragilidade humana. A peça começa com o impacto brutal de uma barragem que se rompe, deixando 150 mortos em seu rastro. É a partir dessa tragédia que a narrativa se ergue, tocando em feridas profundas e reavivando dores coletivas que parecem querer explodir a qualquer instante. Já nos primeiros instantes, o cenário nu e a encenação sem ornamentos deixam no ar uma sensação de tensão crescente, quase claustrofóbica — como se tudo pudesse implodir a qualquer momento.

Uma figura-chave nesse enredo é o jornalista especializado em economia. Ele investiga o desastre enquanto luta contra seu câncer metastático, o que injeta uma urgência diferente em cada percurso. Sua busca não se resume a provar a culpa dos executivos — ele quer expor a lógica que sustenta as engrenagens de uma megacorporação. A peça se destaca justamente por não cair na armadilha do “herói contra vilão”; em vez disso, deixa clara a complexidade dos bastidores, dos discursos que tentam encobrir erros graves, e da distância fria entre as decisões dos altos executivos e as vidas impactadas por elas.

A direção encara esse confronto sem medo. O cenário vazio concentra nossa atenção nos diálogos e nas emoções dos atores. Os silêncios e as pausas potencializam o desconforto de quem assiste. Não há catarse fácil ou momento de alívio para a plateia; a escolha é justamente colocar o público cara a cara com a dor das vítimas e com o poder quase intocável dos que tomam decisões. Ao final, a peça não oferece abraços reconfortantes: ela deixa o público se debatendo com o próprio mal-estar, confrontando o que significa testemunhar tragédias que, muitas vezes, parecem distantes.

“Realpolitik” recusa soluções prontas ou fugas cômicas que poderiam amenizar o peso do enredo. O que fica é essa sensação de embate constante entre humanidade e pragmatismo, vida e capital. A peça desafia o espectador a refletir sobre sua própria responsabilidade num sistema que, por vezes, trata pessoas como meros números. E ao usar o teatro como espaço de denúncia, a obra converte a urgência de seu tema em um convite para que cada um de nós pense em seu papel e nas consequências que nossas escolhas têm no mundo.

Além disso, a montagem surpreende ao criticar, de forma certeira, os jogos de poder que permeiam grandes corporações. As atuações de Pedro Osório e Augusto Zacchi são cirúrgicas, potencializadas pela condução firme de Guilherme Leme Garcia e Gustavo Rodrigues na direção. Juntos, eles compõem um espetáculo ousado com uma simplicidade inacreditável, capaz de gerar questionamentos profundos sobre ética e responsabilidade social.

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
Post criado 1795

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Posts Relacionados

Comece a digitar sua pesquisa acima e pressione Enter para pesquisar. Pressione ESC para cancelar.

De volta ao topo