Chegou à Netflix a aguardadíssima sétima temporada de Black Mirror — e, com ela, “Eulogy”, episódio que mergulha de cabeça no novelo emaranhado entre tecnologia e lembrança. O artifício que move a trama é, por si só, de arrepiar: um software capaz de nos colocar dentro de fotografias antigas para que possamos compor um elogio fúnebre à altura de quem partiu. Para Phillip (Paul Giamatti), essa porta no tempo tem gosto amargo. Nas três Polaroids que ele escolhe, o rosto da antiga namorada, Carol, foi rabiscado às pressas — uma tentativa infantil e inútil de apagar a dor de quem preferiu rasgar a página em vez de virá-la.
A lente do episódio é quase psicanalítica. Memória não é gaveta bem arrumada, é história recontada para que possamos seguir vivendo. Ao reconstruir aqueles cenários riscados, Phillip ressuscita tudo o que havia empurrado para o porão. O dispositivo age como analista: força o encontro — desconfortável, mas necessário — entre a vontade inconsciente de repetir a perda e o desejo de transformar luto em futuro. O roteiro frisa que o destino cinzento de Phillip, envelhecendo sozinho numa cidade pequena, não foi castigo do relógio: brotou de decisões minúsculas, de cada conversa adiada, cada foto rasgada em silêncio.
Paul Giamatti carrega tudo isso no corpo. Ele faz dos olhos uma zona de exclusão — raramente encara a lente. Um leve tremor no canto da boca vale mais que páginas de diálogo. E, nos silêncios, sentimos o peso de tudo que não coube em palavras. Quando enfim chega o choro, ele explode como relâmpago.
A direção de Chris Barrett e Luke Taylor brinca com a nossa percepção: as fotos começam planas, desbotadas, e de repente as figuras respiram, o grão salta, o obturador estala. É lindo e perturbador — como folhear um álbum de família sabendo que cada página guarda algo que talvez preferíssemos nunca reviver.
Charlie Brookere Ella Road, os roteiristas, costuram tudo com a melancolia de quem olha para a própria juventude pelo retrovisor. As memórias de verões vibrantes — risadas ecoando na feira, planos ousados para “quando ficarmos velhos” — batem de frente com ruas vazias, a barbearia fechada, o relógio da praça parado às três e quinze. “Eulogy” pergunta: será que a solidão é obra do tempo… ou culpa da nossa covardia diante das encruzilhadas?
Os giros do enredo — a identidade real da Guia, o segredo por trás da foto rasgada — mantêm o coração na garganta. Mas, quando a tela escurece, fica o olhar de Phillip: um pedido de desculpas tardio para o próprio passado. Aprendemos aí: a tecnologia pode reabrir portas, atravessá-las ou não continua sendo só nosso.
“Eulogy” dispensa consolo fácil. Oferece, em vez disso, um espelho sem retoques. Nele, entendemos que dá para reescrever certas memórias antes que o tempo as cubra de poeira — mas apenas se tivermos coragem de encará-las de frente. Black Mirror talvez nunca tenha soado tão profundamente humano.