OPINIÃO | “Diga Quem Sou Eu”: o escuro das lembranças negadas

“Diga Quem Sou Eu”, dirigido pelo britânico Ed Perkins, é um dos filme documentos mais devastadores — e necessários — que a Netflix oferece hoje.

A narrativa se desdobra em três atos. Tudo começa quando, aos dezoito anos, Alex Lewis sofre um acidente de moto e desperta num mundo sem lembranças — exceto pela sensação imediata de reconhecer seu gêmeo idêntico, Marcus. De um instante para outro, Marcus passa a carregar dois passados sobre os ombros: o real, marcado por anos de abuso sexual imposto pela mãe até a adolescência, e o imaginário, que ele cuidadosamente fabrica para proteger o irmão da ferida. Durante vinte anos, oferece-lhe um retrato de família digno de propaganda de margarina, enquanto tranca a verdade a sete chaves: atrás da porta do quarto materno, não só a violência da mãe, mas também a presença de homens estranhos, fazia da casa um território de horror.

Visto pela lente da psicanálise, o documentário revela uma engrenagem delicada entre recalque e repetição. Alex encarna a amnésia traumática: vive um mal-estar sem lembranças que o justifiquem, como se o psiquismo quisesse protegê-lo da dor. Já Marcus assume a função de superego tirânico que vela o horror — e, ao mesmo tempo, o repete interiormente cada vez que cala. Quando Alex pressiona: “Diga quem eu sou”, instaura-se aquilo que Freud chamou de Nachträglichkeit: o passado precisa ser reinscrito depois para adquirir sentido no agora; somente então pode ser elaborado.

No encontro final, Perkins abandona artifícios e deixa os irmãos frente a frente. O enquadramento nu coloca a palavra em primeiro plano, lembrando que a “cura” na tradição freudiana passa pelo falar e, sobretudo, pelo escutar. Ao narrar, Marcus devolve a Alex não apenas lembranças roubadas, mas a chance de construir sua própria narrativa. O gesto funciona como ritual de passagem: do silêncio paralisante à linguagem que transforma.

É impossível sair ileso. O filme abala porque inverte a imagem ideal da mãe — primeiro objeto de amor — e a mostra como algoz, distorcendo por completo a tessitura edípica. Mas também comove por revelar que, mesmo num cenário de perversão extrema, dois irmãos podem encontrar na palavra um território de reparação.

“Diga Quem Sou Eu” faz do espectador cúmplice desse processo: ao partilhar o segredo, somos lembrados de que enfrentar a verdade, por mais dilacerante que seja, costuma ser menos devastador do que permanecer no escuro das lembranças negadas.

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
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