ADEUS | O Dia em que Nana Caymmi brigou comigo ou Nana de timbre entre bruma e mar

Para mim, Nana Caymmi sempre manteve lugar cativo entre as cinco vozes fundamentais da música brasileira. As outras, que eu não saberia ranquear, são Maysa, Gal Costa, Maria Bethânia e Ângela Maria. Há algo em seu timbre — entre bruma e mar — que se impõe sem alarde, como quem sabe que não precisa erguer a voz para ser ouvida.

Volto, de início, ao LP Nana Caymmi (1973). Gravado em Buenos Aires, nos estúdios Ion, e lançado aqui pela CID, o disco permanece joia pouco visitada. A forma como Nana percorre “Nunca Mais” e “Dora”, de Dorival Caymmi, mostra rara combinação de contenção e intensidade: as canções respiram, mas não se dispersam. E “O Amor É Chama”, dos irmãos Valle, ganha registro que parece definitivo, sem buscar artifícios além do necessário — apenas voz, convicção e uma banda em estado de escuta.

Dez anos depois, em Voz e Suor (1983), Nana atinge um tipo de maturidade interpretativa que roça o absoluto. O repertório, apoiado em compositores como Tom Jobim e Ivan Lins, revela uma cantora em plena posse de suas escolhas: cada inflexão soa deliberada, cada pausa tem peso dramático. Foi ali que ela parecia decidir disputar, de fato, o título de maior intérprete do país. Tivesse havido mais ousadia de repertório nos anos seguintes, talvez essa coroa não fosse objeto de debate.

O fato é que, a partir de então, muitos lançamentos passaram a reunir standards já consagrados — gravações elegantes, mas previsíveis para quem acompanha sua trajetória desde o início.

Foi nesse contexto que surgiu, em 2007, Quem Inventou o Amor, dedicado ao cancioneiro de Dorival. A divulgação anunciava uma faixa inédita do compositor, “Desde Ontem”. No entanto, a canção pertence a Fernando Lobo e fora registrada por Aracy de Almeida em 1949. Quando compartilhei essa informação com o crítico Pedro Alexandre Sanches, da Folha de S.Paulo, ele a publicou, e, socorro, Nana me telefonou indignada — mais de uma vez. Tentei explicar que a música era memória antiga da minha mãe, mostrada por ela nas rodas de casa; não convenceu. O incidente nunca se resolveu por completo, mas não diminuiu meu respeito pela artista.

Com o passar do tempo, aprendi que a admiração verdadeira sobrevive a atritos. Continuo voltando aos discos de 1973 e 1983 como quem revisita um livro essencial: cada audição renova a certeza de que Nana, mesmo sem ocupar todos os holofotes, é coluna mestra da nossa canção. Sua voz recorda que interpretação não é apenas técnica, mas visão de mundo — e nisso ela permanece insubstituível.

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
Post criado 1869

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