O mundo era outro em 1989, quando cheguei a São Paulo para tentar a vida no teatro. Era muito menos complexo, mas muito mais fechado. Não existia teatro de grupo, não existia trânsito entre os que haviam chegado a algum lugar dentro do teatro e os que estavam começando. Até porque começar significava ter frequentado a Escola de Artes Dramáticas da USP ou ter tido a sorte de ser descoberto por algum diretor importante.
Não havia salas experimentais nem teatros pequenos. Ou era um teatrão de cortinas e poltronas de veludo vermelho, ou não havia teatro. Os Satyros se formaram nesse não-lugar. E era difícil furar a bolha. De certa forma, conseguimos.
Naquele tempo tivemos a bênção da Folha de S.Paulo, com Álvaro Machado e Antonio Gonçalves Filho. Mas antes mesmo disso, apareceu no nosso teatro uma crítica importante que, naquele momento, escrevia para a Tribuna de Santos e pesquisava o teatro de Antunes Filho.
Era Carmelinda Guimarães. Doutora em teatro pela ECA/USP, orientada por Sábato Magaldi. Uma mulher elegante, muito elegante, que morava na Vila Nova Conceição e logo se tornou nossa fã. Assistia a tudo o que fazíamos e escrevia críticas generosas e atentas. A partir desse momento, Carmelinda se tornaria uma figura fundamental no nosso trabalho. A ponto de batizar o nosso processo de pesquisa. O Teatro Veloz, a metodologia que mais tarde sistematizaríamos, recebeu esse nome dela. Dizia: “vocês são muito velozes, e para vocês, sistema de trabalho e vida são a mesma coisa.”
Foi ela, também, quem nos apresentou ao FITEI – o Festival Internacional de Expressão Ibérica do Porto – que nos convidou para apresentar “Saló, Salomé” em sua edição de 1992. Por causa dessa indicação fizemos um “exílio voluntário”, na terra de Camões. Ficamos em Portugal por sete anos! E que lindo que foi!
Em 1994, em plena Copa do Mundo, Carmelinda nos visitou em Portugal. Assistimos juntos à final entre Brasil e Itália, no quarto do hotel onde ela estava hospedada, em Almada. É impossível esquecer a cena. O Brasil, a bola, nós exilados, e ela – tão elegante – sentada na beirada da cama, torcendo junto com a gente. Quer dizer… elegante só até a primeira taça de vinho. Porque ficamos bêbados, e o que se seguiu virou uma daquelas boas histórias. A certa altura, Carmelinda se empolgou tanto que acabamos todos rolando pelo chão quando o Brasil se sagrou campeão.
Depois que voltamos a São Paulo, já na Praça Roosevelt, Carmelinda ainda se tornaria nossa espectadora mais querida. Mas aos poucos foi deixando de ir, até que desapareceu. Não falávamos com ela há muitos anos. Lembro que chegou a participar de alguma mesa de discussão na SP Escola de Teatro, logo no início da fundação da escola. Depois disso, nunca mais nos falamos.
De vez em quando eu me lembrava dela, pensava em procurá-la, mas a gente vai se perdendo das coisas e das pessoas, não é?
Hoje, entro no Facebook e fico sabendo de sua partida.
Foi-se uma mulher que amava o teatro e que fez dele também a sua morada. Uma mulher elegante, muito elegante, como as palavras que ela escrevia sobre nós. Carmelinda não apenas assistia aos nossos espetáculos. Ela nos via, nos escutava, nos devolvia em suas críticas uma imagem nossa que às vezes nem sabíamos ter. Em cada texto dela havia algo de abrigo e de espelho, um cuidado que atravessava a cena e chegava até a alma. Ela nos ensinou que a crítica também pode ser gesto de amor, de cumplicidade, de resistência. Hoje, penso nela e sinto que ainda habita cada fileira vazia, cada canto de palco onde alguém ousa sonhar. Porque quem ama o teatro assim não vai embora de verdade. Fica por aqui, soprando leve nas cortinas, sentado em silêncio entre os espectadores, sustentando a delicadeza das memórias e o peso do que foi vivido.