Faz tempo já. E foi um barraco só. Era um sábado de manhã e eu estava passeando com Chico e Cacilda pela Praça Roosevelt, quando nos aproximamos do espaço onde ficam os pets.
Chico se aproxima com sua inseparável bolinha azul na boca. Mal chegamos e uma mulher corpulenta nos interpela.
— Pode devolver a bolinha da Flora?
— Você está enganada, essa bolinha é do Chico.
— Ah, não, é cínico, além de tudo?
A moça está nervosa e eu não tenho muito mais o que dizer. De repente aparece a Flora, uma cachorrinha muito invocada, com uns sininhos bem irritantes e começa a rosnar pra gente.
— Viu só, até ela já sabe que você é um cínico. Devolve a bolinha!
Eu estou ensonado, não quero confusão. Deixo a mulher e sua Flora pra trás e sigo como se nada tivesse acontecendo, enquanto ainda ouço a moça esbravejar:
— Cínico, devolve essa bolinha!
O tempo foi passando e vez ou outra ia encontrando aquela mulher e sua cachorrinha, com sua coleira de sininhos irritantes. E toda vez que passa perto de mim, me xinga:
— Cínico!
Já me acostumei, então nem ligo. Nunca reagi, sequer olho pra ela, o que imagino deve deixá-la possessa. E todas as vezes que cruzo com ela e sua Flora, lá vai o Chico com sua bolinha azul entre os dentes.
Mas o que o Chico mais sabe fazer nessa vida é perder bolinhas. Então, toda vez que vou ao pet shop fazer a compra do mês, já trago duas ou três bolinhas para me precaver. Porque uma coisa é certa: Chico não pode ficar sem a sua bolinha azul saltitante.
Hoje de manhã, quando chegamos à praça, a primeira pessoa que avisto é a dita cuja e a cachorrinha Flora com sua coleira de sininhos irritantes. Resolvo mudar o meu trajeto no instante em que o Chico entra num dos canteiros para fazer cocô. Neste momento ele sempre solta sua bolinha, faz isso toda vez.
Quando estou me preparando para pegar um saquinho para recolher o cocô, ouço uns sininhos e lá vem a Flora e… pum, pega a bolinha do Chico e sai correndo.
Eu fico sem saber o que fazer. Enquanto recolho o cocô, vejo o Chico me olhando com cara de “você não vai fazer nada?”. Estou de costas para a mulher, tutora da Flora, o que não me impede de ouvi-la meio cantando, meio gritando:
— Deus é pai, Deus é pai. Nada como a verdade do Senhor. Obrigado, meu Salvador!
Eu me visto de egípcia, convido o Chico e a Cacilda, que também está por ali, e seguimos pra casa. Já um tanto distante da cena, ainda ouço, entre um grito e uma cantoria, a mulher:
— Glória, Glória!…
Em 2014 escrevi o livro “Chico só queria ser feliz”, pela ed. Melhoramentos, col. Caderninhos de Educação Ambiental. Download aqui.