OPINIÃO | O jornalista Dafne Souza quis saber a minha opinião sobre Fernanda Montenegro

Recentemente, fui contatado pelo jornalista Dafne Souza, que estava escrevendo uma matéria sobre Fernanda Montenegro para a revista Monet. Ele me pediu uma entrevista sobre a nossa primeira-dama do teatro, cinema e televisão brasileiros. Abaixo, compartilho minhas respostas às suas perguntas.

 

Qual a importância/contribuição da Fernanda Montenegro para as artes brasileiras?
Refletir sobre a contribuição de Fernanda Montenegro à cultura brasileira é, inevitavelmente, deparar-se com uma trajetória que transcende o ofício de atriz e adentra o campo da resistência cultural e da construção de uma identidade artística nacional. Como ator e dramaturgo que, há 35 anos, fundou a companhia Os Satyros, reconheço em Fernanda não apenas uma mestra do teatro, mas também uma guardiã das múltiplas vozes que compõem o Brasil.

Dona Fernanda, ao longo de décadas, manteve uma companhia de teatro que cruzou as fronteiras do Brasil, levando a arte dramática a lugares onde o teatro era, muitas vezes, um raro visitante. Sua dedicação inabalável a esse trabalho itinerante reflete uma compreensão profunda do teatro como um espaço de encontro, de trocas simbólicas e de construção comunitária. Em um país continental como o nosso, onde as desigualdades culturais se manifestam com tanta força, a prática de Fernanda em levar o teatro aos mais variados rincões é uma forma potente de resistência e de valorização da cultura popular.

O ofício do teatro, como bem sabemos, é um exercício contínuo de diálogo com o presente e com a tradição. Fernanda Montenegro, com sua vasta carreira, não apenas dialoga com a tradição teatral brasileira, mas também a reconfigura. Sua atuação é um ato de transgressão e de renovação constante, que desafia as convenções e nos convida a refletir sobre o nosso próprio papel enquanto artistas e cidadãos. Sua presença no palco é sempre um manifesto, um lembrete de que o teatro não pode ser reduzido a uma mera forma de entretenimento, mas deve ser visto como uma prática política, ética e estética.

A importância de Fernanda Montenegro reside em sua capacidade de se reinventar e de continuar, década após década, a provocar o pensamento crítico, a suscitar emoções e a revelar as contradições da nossa sociedade. Para nós, que dedicamos a vida ao teatro, dona Fernanda é uma referência inescapável, uma artista que soube utilizar sua voz e seu corpo para amplificar as histórias e as experiências humanas, especialmente aquelas marginalizadas pelo cânone dominante.

Em um contexto em que a arte frequentemente é desvalorizada e vista como supérflua, a trajetória de Fernanda Montenegro resgata a urgência do fazer teatral. Dona Fernanda nos ensina que o teatro é um ato de resistência, uma forma de luta contra o esquecimento, contra a alienação e contra a homogeneização cultural. Sua vida e obra constituem um legado vivo, uma inspiração constante para todos aqueles que, como eu, acreditam no poder transformador do teatro e no seu papel fundamental na construção de um Brasil mais justo e plural.

Assim, ao celebrar Fernanda Montenegro, celebramos também o teatro em sua essência mais pura e revolucionária. Celebramos o comprometimento com a verdade cênica, com a ética do trabalho e com a paixão pela arte que transcende o tempo e o espaço. Ela é, sem dúvida, uma das figuras mais emblemáticas de nossa cultura, e sua contribuição permanece como um farol para todos nós que, dia após dia, persistimos na criação de um teatro vivo, pulsante e indomável.

 

Como você definiria a atriz Fernanda Montenegro?

 Fernanda Montenegro pode ser definida como a síntese perfeita entre talento inato e um profundo compromisso ético e estético com a arte. Sua trajetória é um exemplo raro de coerência artística, em que cada escolha de papel, cada interpretação e cada presença cênica se tornam um ato de resistência cultural e um manifesto sobre a condição humana. Ela não é apenas uma atriz que domina sua técnica com maestria, mas uma intérprete que infunde em cada personagem uma complexidade emocional e uma verdade cênica que transcendem o texto e tocam o espectador de forma visceral.

O talento de Fernanda Montenegro, inquestionável e amplamente reconhecido, vai além da habilidade de transitar por diferentes gêneros e estilos dramáticos com uma facilidade impressionante. Ela é capaz de capturar a essência das personagens que interpreta, revelando suas camadas mais profundas e dando voz a nuances que muitas vezes permanecem latentes no subtexto das obras. Entretanto, o que a diferencia de muitos outros talentos é o compromisso inabalável com uma ética de trabalho que valoriza a verdade, a integridade e o respeito pela arte teatral. Para Fernanda, o palco não é um lugar de vaidade ou de mera exposição, mas um espaço sagrado de comunicação e de transformação social.

Ao longo de sua carreira, manteve uma postura coerente e firme em relação à sua atuação, recusando o fácil apelo ao espetáculo vazio e buscando sempre um teatro que provoque reflexão e que dialogue com as questões mais prementes de seu tempo. Sua escolha de repertório é criteriosa, privilegiando textos que desafiam o status quo, que questionam as convenções sociais e que exploram as ambiguidades da alma humana. Entende o teatro como um espaço de confronto e de construção coletiva de sentido, onde atores e espectadores compartilham de uma experiência única e irrepetível.

Em suas criações, alia o rigor estético a uma profunda sensibilidade humanista, revelando uma atriz que está sempre em busca de novos desafios e que se recusa a acomodar-se em fórmulas ou estereótipos. Seu trabalho é marcado por uma coerência ética que se reflete em sua postura pública, em suas declarações e em suas ações fora dos palcos, sempre em defesa da cultura, da democracia e da liberdade de expressão.

Fernanda Montenegro é mais do que uma atriz excepcional; ela é uma pensadora da cena, uma artesã de seu ofício que entende o teatro como uma forma de arte total, que abarca o pensamento crítico, a poesia, a política e a filosofia. Sua trajetória, marcada por escolhas ousadas e por um compromisso intransigente com a verdade cênica, faz dela uma figura ímpar na cultura brasileira e uma inspiração contínua para todos nós que buscamos no teatro uma forma de expressão e de resistência.

 

Você já trabalhou com ela?

Infelizmente, não tive essa oportunidade. Mas estive com Dona Fernanda em momentos marcantes da minha vida. Como espectador de seu trabalho desde sempre, lembro-me com detalhes da primeira vez que a vi em cena. Foi em “As Lágrimas Amargas de Petra von Kant”, de Fassbinder, dirigida por Celso Nunes, no início dos anos 1980. Naquele momento, eu acabara de chegar a Curitiba, vindo de Ribeirão Claro, no interior do Paraná. Foi um verdadeiro deslumbramento; raras vezes um trabalho me impressionou tanto.

Em 1985, quando eu estava no início da minha formação teatral, Dona Fernanda retornou a Curitiba com sua “Fedra”, de Racine, dirigida por Augusto Boal. E foi em 1986 que tive a honra de ser aluno de Dona Fernanda. Na época, o Teatro Guaíra era dirigido por Lucia Camargo, que fazia acordos com atores e atrizes que passavam por Curitiba para se apresentarem no Guaíra. Foi assim que, por três dias, tive a oportunidade de encontrá-la em uma sala de aula. Aqueles encontros foram inesquecíveis e marcaram profundamente minha trajetória no teatro.

 

Que atuações dela você destacaria no teatro, no cinema e na TV?

No teatro, destacaria “As Lágrimas Amargas de Petra von Kant”, de Fassbinder, dirigida por Celso Nunes; “Fedra”, de Racine, sob a direção de Augusto Boal; “Dona Doida”, uma adaptação da obra de Adélia Prado, com direção de Naum Alves de Souza; e “Dias Felizes”, de Beckett, dirigida por Jacqueline Laurence. Também é impossível esquecer Dona Fernanda em “The Flash and Crash Days”, de Gerald Thomas.

Contudo, acredito que o que ocorreu recentemente, primeiro no Sesc 14 Bis e depois no Parque Ibirapuera, com sua leitura de Simone de Beauvoir, foi algo verdadeiramente extraordinário. De repente, Dona Fernanda se transformou em uma pop star, atraindo milhares de pessoas para um parque para discutir filosofia. Para mim, isso é uma das manifestações mais bonitas que vimos nos palcos nos últimos anos. Na verdade, não me recordo de um fenômeno semelhante. E tudo isso aos 95 anos!

Dona Fernanda fez tantas coisas incríveis que é difícil escolher. Mas não posso deixar de mencionar mais dois momentos memoráveis de sua carreira. Sua atuação em “Central do Brasil”, de Walter Salles, é absolutamente magistral; e sua interpretação de Nossa Senhora em “O Auto da Compadecida”, de Guel Arraes, Adriana Falcão e João Falcão, baseado na obra de Ariano Suassuna, é inesquecível.

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
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