O Zé Celso sempre esteve no DNA dos Satyros. Desde o início. Antes do início, até. Quando eu conheci o Rodolfo, lá em 1989, foi o Zé quem nos aproximou. O Rodolfo estava no mestrado, nas Ciências Sociais da USP, pesquisando o Teatro Oficina. E uma das intersecções de seu trabalho eram as ideias do apolíneo/dionisíaco em Nietzsche, que eu lia e relia. “O Nascimento da Tragédia no Espírito da Música” era um dos meus livros preferidos e importante material para a pesquisa do Rodolfo. Estávamos, naquele momento, buscando o dionisíaco no teatro, que, em verdade, andava higiênico demais, apolíneo demais. Este foi o nosso primeiro elo construído juntos. E, a partir de então, um mundo de descobertas iria nos jogar em direção ao Teatro Oficina.
Em 1989 a gente ainda não conhecia o Oficina como é hoje. O teatro seria inaugurado em 1993, quando não morávamos mais em São Paulo. Passamos muitos anos longe do Brasil. Fizemos um exílio voluntário entre 1992 e 1999 e, nesse período, idealizando o que conhecíamos, em teoria, do trabalho do Zé. Quando retornamos a São Paulo, em 2000, porém, o Teatro Oficina entraria nas nossas entranhas de maneira visceral.
Enquanto reformávamos a sala que viria a se tornar o Espaço dos Satyros, ensaiamos no Teatro Oficina a peça que inaugurou nosso espaço na Praça Roosevelt, “O Retábulo da Avareza, Luxúria e Morte”, de Valle-Inclán. Entre Satyros e Oficina, naquele momento, a Letícia Coura, atriz desse trabalho e figura importantíssima dos primeiros tempos dos Satyros na Roosevelt.
Zé, mais do que trazer Dioniso para a cena, nos ensinou que era possível. Zé é nosso Exu, nosso Ogum, nosso abre-todos-os-caminhos. Não apenas revolucionou a cena contemporânea, como nos indicou que era possível atravessar o nosso campo e o nosso tempo com paixão e muita resiliência. Existimos porque Zé veio antes. Como sábio maior disse, desde sempre: teatro existe para disfarçar o tempo ruim e alertar o tempo bom que a vida é finita apenas nos teatrões onde a coxia disfarça a cena. Por isso os Satyros, como o Teatro Oficina, não disfarçam os bastidores. Estaremos sempre nus, de prontidão, dissimulados e prontos para o embate.
Em 2010, quando inauguramos a SP Escola de Teatro, Zé foi nosso professor de número 1. Queríamos homenageá-lo. Mais: queríamos sua energia presente em nossa história. Sim, sabíamos, tínhamos certeza, que estávamos vivendo um divisor de águas na história do teatro brasileiro. E nosso mestre maior tinha que estar conosco.
Choro, de verdade choro. Perdemos o melhor do Brasil. Nosso Tirésias, nosso timoneiro, nosso norte; o Teatro Oficina, nosso panteão mais seguro. Porque, nenhuma dúvida: Zé foi o maior encenador brasileiro. Um dos maiores do mundo. Encerra-se hoje o capítulo mais importante da história do teatro brasileiro.
+++ Foto de Andre Stefano, Prêmio Arcanjo de Cultura, Theatro Municipal de São Paulo, novembro de 2019