VANGE LEONEL | O corpo em palavra, a palavra em ato

Existem nomes que não se apagam. Não porque o tempo os preserve, mas porque continuam ardendo em algum lugar dentro da gente. Vange Leonel é um desses nomes. Quando Os Satyros chegaram à Praça Roosevelt, no início dos anos 2000, ela já trazia consigo uma energia que misturava lucidez e rebeldia, uma inteligência rara, daquelas que sabem rir do poder e desmontar as armadilhas da moral. Foi ela, junto de Cilmara Bedaque, quem conduziu por um tempo os encontros do GALF – Grupo Ação Lésbica Feminista, que ocupavam, aos sábados, o Espaço dos Satyros. Eram tardes em que homens não podiam entrar. Nem mesmo no café. E era bonito ver aquele território se tornar um refúgio, um pequeno país de vozes femininas que pensavam, riam, amavam e tramavam futuros.

Vange não era só uma militante. Era uma artista no sentido mais amplo. Escritora, dramaturga, cantora, compositora, pensadora. No Satyros, além de conduzir o grupo, ela participou de encontros, cafés literários e das primeiras edições das Satyrianas, escrevendo textos que uniam crítica, ironia e ternura.

Em 2006, tivemos a honra de produzir sua peça Joana Evangelista, dirigida por Angela Barros e com Alberto Guzik no elenco. Era um tempo heroico, quando ainda se falava com medo – e coragem – de temas como o aborto, por exemplo. Naquele palco, cercado de grades e metáforas de úteros insurgentes, Joana se erguia como figura dupla – santa e pecadora, médica e mártir – para denunciar a violência das normas e o aprisionamento dos corpos femininos.

O teatro de Vange pulsava o mesmo sangue de sua prosa. Em As Sereias da Rive Gauche, de 2002, ela levou à cena a Paris das intelectuais e artistas lésbicas – Natalie Barney, Renée Vivien, Colette, Gertrude Stein – transformando cafés e pensões da Rive Gauche em arquipélagos de liberdade e desejo. O texto é uma colagem poética, onde cada diálogo é também um gesto político para celebrar a autonomia e o prazer entre mulheres, resgatar uma linhagem esquecida da arte e da história.

Essa força também habita seus livros. Em Lésbicas (1999) e Grrrls – Garotas Iradas (2001), Vange deu forma à experiência lésbica com humor, coragem e beleza, abrindo espaço para que outras mulheres pudessem se reconhecer nas páginas e, talvez, se reinventar. Já em Balada para as Meninas Perdidas (2003), ela mergulhou nas luzes e sombras da cena noturna, criando uma “Terra do Nunca” clubber, povoada por mulheres em busca de pertencimento, amor e identidade. Um livro sobre o desejo e a solidão, sobre a vertigem de ser livre e, ao mesmo tempo, estar perdida.

Em tudo que escreveu, cantou ou planejou, havia esse mesmo gesto. O de quem sabe que o corpo é um território político e que a palavra, quando encarnada, pode mover estruturas.

Nos últimos anos de sua vida, não nos víamos com frequência, mas conversávamos frequentemente pelo Twitter. Vange era sempre generosa, disponível, curiosa. Quando criamos a SP Escola de Teatro, em meio à surpresa e à desconfiança de muitos, ela foi das poucas que compreenderam o que estava em jogo. Me lembro disso com gratidão.

Vange partiu cedo demais, em 2014, aos 51 anos. Mas deixou rastros de fogo. Suas palavras ainda ecoam entre os muros da Roosevelt, nas páginas que resistem, nas vozes que se levantam. Ela foi, e continua sendo, uma dessas mulheres que, ao dizer o que sentem, abrem passagem para que todas as outras possam existir. Na SP Escola de Teatro, uma de nossas salas carrega o seu nome: a R4, na sede Roosevelt. Não é apenas uma homenagem, mas um gesto de permanência. Uma maneira de inscrever sua presença nas paredes da escola, para que sua voz siga nos inspirando, todos os dias, a pensar, criar e resistir.

Nos tempos em que a pauta feminista ainda engatinhava, ela já estava lá. Pensando, cantando, escrevendo, lutando. E, de certo modo, ainda está. Porque algumas presenças nunca se apagam. Apenas mudam de forma e seguem nos ensinando a não calar.

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
Post criado 1947

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Posts Relacionados

Comece a digitar sua pesquisa acima e pressione Enter para pesquisar. Pressione ESC para cancelar.

De volta ao topo