Um filme, um colóquio no Porto e o ensaio aberto de um espetáculo em Rio Maior

Vamos lá, agora no avião, depois de ter embarcado e desmaiado, literalmente, por cinco horas seguidas em minha poltrona, acho que, enfim, consigo raciocinar alguma coisa. Cheguei no aeroporto de Lisboa às sete horas, direto de Rio Maior, onde estava hospedado nos últimos dias. Na noite anterior, havia dormido menos de três horas. 

O colóquio “Arte inclusiva – Quem inclui quem? , realizado pelo Centro de Estudos Arnaldo Araújo da Escola Superior Artística do Porto – Esap e SP Escola de Teatro de São Paulo, teve momentos incríveis. A começar pela apresentação de “O Filho Pródigo”, o filme-concerto de Luísa Pinto e Carlos Coelho. Muito corajosa a proposta estética da obra. Em preto e branco, com muitos planos abertos, pouquíssimas falas, legendado e com um elenco genial, o filme é de uma delicadeza só. Planejado a partir de um trabalho que Luisa Pinto desenvolve com os detentos do Estabelecimento Prisional de Santa Cruz do Bispo, o filme traz no elenco esses alunos, atuando com atores profissionais, numa narrativa sobre amor, esperança e perdão. 

Experiências apaixonantes

Sou apaixonado por experiências assim, de trabalhos com não-atores, essas pessoas que vêm com tudo, ultrapassam as redes de proteção tão desenhadas e trabalhadas por nós, profissionais. “O Filho Pródigo” será apresentado em São Paulo, em novembro, dentro da programação das Satyrianas. E sabem onde? No Cine Bijou! Mas sobre isso falamos melhor outra hora.

Nos dias que se seguiram à exibição do filme, no Porto, nos reunimos para discutir os temas propostos pelo colóquio, primeiro em salas de trabalho e depois nas mesas dos cafés, dos almoços e jantares, por noites afora. Discussões que continuam nas trocas de e-mails e mensagens. A SP Escola de Teatro esteve representada por Adriana Vaz e Joaquim Gama, além de mim.

Nossos anfitriões no Porto não poderiam ser melhores. Luisa Pinto, professora da ESAP, e seu amado, Bruno Santos, além de nos levarem para conhecer o restaurante Adega Escondida, no bairro Paranhos, que eu já elejo um dos melhores da cidade, preparou-nos em sua casa uma bacalhoada que comemos rezando. Claro, tudo isso sempre muito bem acompanhado de um bom vinho. Bruno é sommelier e orgulha-se de sua adega –e de seu apurado gosto de bom conhecedor de vinhos.

Do Porto segui para Rio Maior, onde assistiria a um ensaio aberto de “Abre os Olhos”, o novo espetáculo do meu amigo Rui Germano, que trabalha com teatro comunitário na cidade há muitos anos. “Abre os Olhos” é a 10ª produção de Rui.  

Rui Germano flerta com o trabalho de Tadeusz Kantor

São 24 atores em cena, vindos de oficinas, de dois grupos distintos, com os quais Rui trabalha em Lisboa e Rio Maior. É a primeira vez que Rui une as duas turmas. O resultado é um trabalho bastante interessante, onde a grande estrela é o texto.

“Abre os Olhos” fala de uma comunidade, o bairro do Carrasco, onde vivem moradores tão curiosos como a avó e o neto que comandam a instituição Bolinhas de Pelo; ou a pianista antes famosa e que, depois de ser espancada pelo marido, separa-se dele e vai viver no bairro, tocando piano só às vezes, solitariamente, sem nunca mais atuar publicamente. Ou, ainda, a história de Amor e Macau, ela uma esposa dedicadíssima ao marido que sofreu um AVC, mas que estão sendo despejados por conta da especulação imobiliária, o preço dos aluguéis estão ficando muito altos. Histórias engraçadas também, como as da telefonista ou das alcoviteiras que vão, em registro cômico, tecendo a grande e interessante colcha de retalho dramatúrgica proposta por Rui Germano.

“Abre os Olhos” é  um espetáculo triste. Há uma ligação bem forte da encenação de Rui com o trabalho de Tadeusz Kantor (1915-1990), o encenador polonês que propôs o jogo “memória X invenção”, através de imagens fortes e perturbadoras, que flertavam com as artes plásticas, nomeadamente com os movimentos de vanguarda de sua época.

No palco, a partir de uma estrutura de andaime, Rui desenha as pequenas casas dos moradores do bairro em que vivem as personagens, onde toda a ação da peça se desenrola. Cada uma delas ornamentada com pequenos objetos e histórias daquelas figuras. Detalhes tão singelos que muitas vezes nem chegam aos olhos do público, tamanha delicadeza. Talvez nem funcione esteticamente ou para os olhos dos espectadores, de tão singelos. Mas para a pesquisa dos atores e do próprio encenador, o procedimento é um motor interessante para a construção dos tipos da peça.

“Abre os Olhos”, o texto, será lançado pela Editora Giostri, em fevereiro, quando Rui Germano estará em São Paulo para ministrar um curso sobre o seu trabalho.

Bem, agora é me preparar para as próximas epopeias. Daqui a pouco viajo pra Cabo Verde, depois tem Satyrianas e, em seguida, “Todos os Sonhos do Mundo” estreia no Satyros. E tudo isso nos próximos 30 dias. Socorro, preciso descansar, rs.

Trailer do filme “O Filho Pródigo”:

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
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