TRAVESSIA | Os que guardam o futuro

De dois em dois meses, como quem renova o fôlego, atravesso o corredor envidraçado da SP Escola de Teatro até a sala onde se reúnem os conselhos da nossa Associação dos Artistas Amigos da Praça. Ali, antes mesmo de se abrirem pastas e planilhas, abre-se um tempo de memória e afeto: vejo o sorriso de Contardo Calligaris — ainda vibra na mesa, lembrando-nos de que manter uma escola é, no fundo, sustentar uma ética do desejo. Hoje, quem assume esse chamado é Isildinha Baptista Nogueira, outra psicanalista que troca a aura do consultório pela escuta coletiva e nos lembra de que nenhuma contabilidade faz sentido se não se dobra sobre perguntas humanas.

Chegamos para aprovar as contas do primeiro quadrimestre — ato que à distância poderia soar burocrático —, mas aqui se converte em celebração. É impossível tratar de números como se fossem abstrações quando se tem diante dos olhos a matéria viva que eles sustentam: os estudantes que estreiam seus primeiros espetáculos, a bibliotecária que descobre um volume raro para o acervo, o vigia noturno que apaga as luzes de um dia cheio de atividades. Cada rubrica traz o perfume dessas pequenas epifanias.

Compõem o conselho de administração Hubert Alquéres, Elen Londero, Eunice Prudente, Fabio Souza Santos, Helena Ignez, Luiz Galina, Maria Bonomi, Patricia Pillar e o benemérito Lauro Cesar Muniz. No fiscal, Wagner Brunini, Maurício Ribeiro e Rachel Rocha. Diversos na experiência, convergem no princípio elementar: transparência é pré-condição de permanência. Cumprem o ofício sem remuneração, mas com o tipo de paga que se mede em horizonte — a chance de ver outro artista atravessar um limite que, sozinho, talvez não ousasse.

A Adaap, desde 2010, atravessou auditorias sem receber uma única anotação. Orgulho? Sim, mas não uma soberba estéril; antes, a tranquilidade de quem dorme sabendo que cada centavo é fio de luz costurando futuro. Esse zelo tem um arquiteto: Tato Consorti, meu fiel escudeiro, guardião obstinado da memória institucional. Ao seu lado, Elen Londero que chegou há menos tempo neste posto, mas que já faz parecer que sempre esteve aqui — há talentos que se instalam com a naturalidade da sombra de uma árvore sobre a calçada.

Termino a reunião e percebo que não falávamos apenas de balanços. Falávamos, sobretudo, da convicção partilhada de que educação e cultura são os motores de um mundo mais respirável. A educação cria o chão onde todos pisamos na mesma altura; a arte, essa misteriosa ferramenta de escavação interior, lembra-nos que há sempre um nível mais fundo de humanidade a descobrir. Cuidar desses motores é escolher a lentidão do trabalho paciente contra o atalho do cinismo. Nenhum de nós cultiva ilusões messiânicas; sabemos que o mundo não muda em assembleias. Ainda assim, é nesse gesto aparentemente modesto — sentar, ouvir, conferir — que se preserva a chance de um futuro minimamente habitável. Porque alguém precisa guardar as luzes acesas até que a próxima geração possa inventar outras, mais precisas e talvez menos frágeis.

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
Post criado 1839

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