TRAVESSIA | O milagre do desvio

De repente, abriu-se um clarão. Não desses que rasgam o céu com estrondo e dramatizam a cena, mas um clarão íntimo, quase tímido, que vai chegando aos poucos e, sem pedir licença, muda tudo de lugar. As coisas ficaram mais iluminadas, mais potentes, e o espaço – aquele mesmo espaço gasto de todos os dias – começou a sorrir. Sim, sorrir.

Como é possível isso? Um desvio, apenas. Pequeno, curto, quase imperceptível. E fez-se a luz. Não foi preciso uma revolução, nem uma daquelas decisões definitivas que pesam sobre os ombros. Bastou um olhar mais atento para o ritmo secreto da vida, uma escuta demorada às suas sutilezas. Bastou o gesto invisível de reconhecer poesia onde antes havia apenas hábito.

Talvez tenha sido um milagre. Gosto de pensar que os milagres rondam por aí, ansiosos por nos abraçar. Loucos de vontade de nos mostrar sua potência, mas refreados pelo nosso medo, pela nossa pressa, pela nossa descrença. Somos nós, quase sempre, quem impede que eles entrem em cena.

Eu, confesso, sou filho de um milagre. Meu lugar de origem foi sempre o improvável. E chegar até aqui não teve nada de fácil. Mas talvez seja exatamente isso que dá sentido à travessia: perceber que, por entre as frestas, a vida insiste em se reinventar.

E então, basta um desvio. Às vezes, apenas um desvio.

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
Post criado 1928

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Posts Relacionados

Comece a digitar sua pesquisa acima e pressione Enter para pesquisar. Pressione ESC para cancelar.

De volta ao topo