TESTEMUNHO | O Teatro e a Viagem dos Muitos

Nos próximos dez dias, vou ficcionar por aqui. Embora esteja em São Paulo, farei de conta que estou em Havana. Por um motivo justo. Minha companhia de teatro, Os Satyros, estará se apresentando no Festival de Havana.

Nosso espetáculo A Casa de Bernarda Alba abre o festival no imenso e incrível Teatro Nacional de Cuba. Estamos viajando com trinta pessoas. Um milagre! Ou quase. Graças ao trabalho e à obstinação do grupo, que durante meses destinou seus cachês para um fundo comum, transformando o desejo em possibilidade. No Satyros é sempre assim. O impossível costuma ter endereço certo. A gente gosta de gente.

Desde o começo, lá no finzinho dos anos 1980, tínhamos essa mania de conversar com o entorno. Nunca quisemos construir muros em volta. Queríamos que o teatro respirasse com as ruas, com as pessoas, com a vida. O palco, pra nós, nunca foi altar. Antes, sempre foi um chão de fábrica. O teatro nunca foi templo, sempre foi construção. Aqui, ofício da cena vem com cheiro de poeira de ensaio e vozes que se misturam no ar.

Acreditamos nas intersecções. Teatro com muitas outras coisas. Teatro com literatura, teatro com cinema, teatro com as artes visuais, teatro com a performance, com a sociedade. O teatro sempre nos pareceu mais. Sempre procuramos a contaminação. Que ele fosse sujo, vivo, imprevisível. E, talvez por isso, nunca compramos a ideia do protagonista. Sempre achamos que a cena é de quem está ali. Todos têm o mesmo direito à luz, à fala, ao silêncio.

Foi dessa crença que nasceu o nome: Os Satyros. No plural. Porque somos muitos. Porque o teatro, pra gente, só existe quando é compartilhado. Quando há vozes cruzando o mesmo ar, corpos tropeçando uns nos outros, respirações se encontrando na penumbra. Desde o início, brincamos com a ideia de multidão. O que era coletivo virou coro. E o coro virou alma.

Adoro lembrar de uma noite em 2013, quando fizemos Édipo na Praça, e a Cia. Uniópera se juntou a nós. Mais de cem vozes cantaram juntas. Cem! Foi um delírio. Não havia protagonista, nem plateia, nem fronteira. Era um corpo só. Vivo, respirando, pulsando, cantando.

Talvez seja isso o teatro por aqui. Uma reunião de corpos que se reconhecem, ainda que por um instante. Um coro que, a muitas vozes, diz que o mundo continua possível.

E assim seguimos. Já viajamos em multidão para a China, uns anos atrás, com trinta pessoas na bagagem. E, lá atrás, em 1992, levamos Saló, Salomé para Portugal e Espanha, também com trinta atores em cena. Trinta é número simbólico. É o tamanho do nosso sonho coletivo. O teatro, afinal, nunca foi feito para um. É feito por – e  para – muitos.

Então, nestes próximos dias, ficarei aqui em São Paulo, mas minha energia vai vagar por Havana. De alguma forma, estarei lá também. Entre trinta vozes, trinta corações, trinta respirações. Porque o teatro, quando é verdadeiro, tem esse dom: de multiplicar presenças. De transformar a distância em presença. E o tempo, em poesia.

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
Post criado 1966

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