por Clara Balbi e Marina Lourenço
Da Folhapress – São Paulo
Em vez de apagar as luzes, desligam-se as câmeras da plateia. Os cenários, formados por imagens em jpeg, se transformam num clique. E os atores, antes separados dos espectadores por fileiras e fileiras de assentos, parecem mais próximos do que nunca, seus rostos em close.
Quase três meses depois de a programação teatral ser interrompida pela pandemia do novo coronavírus, as peças encenadas virtualmente começam a se difundir. E o palco da vez é o aplicativo de teleconferências Zoom, mais customizável do que as redes sociais convencionais.
Usam a ferramenta, por exemplo, “Pandas, ou Era uma Vez em Frankfurt”, adaptada de um texto do romeno Matéi Visniec pelo diretor Bruno Kott e em cartaz até o início de julho. E “A Arte de Encarar o Medo”, montagem dos Satyros que estreia neste fim de semana.
“É como se estivéssemos descobrindo um novo fazer teatral”, resume Rodolfo García Vázquez, um dos fundadores dos Satyros e diretor do segundo espetáculo. Nele, 18 atores imaginam a realidade 15 anos depois de a pandemia se instaurar, num mundo em que as crianças jamais conviveram com os amiguinhos da escola e todo contato humano é mediado por telas.
García Vázquez afirma que a experiência de dirigir os colegas online não é tão diferente daquela do teatro convencional -“a adrenalina é igualzinho, assim como o medo de errar, a coxia”, descreve.
Em compensação, continua o diretor, no Zoom os atores têm que se desdobrar numa série de funções técnicas, como a operação de luz e de som e a contrarregragem. E mesmo à plateia cabe uma tarefa, de configurar o aplicativo momentos antes do espetáculo com a ajuda de um tutorial.
Em cena, o que se vê em “A Arte de Encarar o Medo” é um mosaico de telas que, se expandindo e se comprimindo de acordo com a situação, muitas vezes remete à estética do videoclipe, com cortes rápidos e rimas visuais.
Não é o único traço das montagens virtuais que indica um DNA compartilhado com o cinema. Outro artifício que chama atenção tanto em “A Arte de Encarar o Medo” quanto em “Pandas, ou Era uma Vez em Frankfurt” é o uso de técnicas de edição para simular um espaço comum entre intérpretes que, na realidade, estão distantes um do outro.
A peça dos Satyros, por exemplo, justapõe duas telas para revelar os supostos pontos de vista de uma mesma ação. Enquanto uma câmera mostra um homem desesperado para sair de casa, a outra mostra o seu olhar percorrendo as ruas do bairro.
Em “Pandas”, sobre um casal de desconhecidos que acorda num quarto depois de um encontro casual, os atores Mauro Schames e Nicole Cordery trocam objetos entre si, dando a entender que ocupam o mesmo cômodo -mesmo que, obedecendo à lógica surrealista da montagem, estes itens sempre cheguem às mãos do outro metamorfoseados.
“Embora romantizemos os encontros, não acredito que estamos sempre no mesmo lugar”, justifica o diretor Bruno Kott, lembrando que as fotografias usadas como pano de fundo pelos protagonistas, substituídas freneticamente, só são iguais num único momento.
Única cena da peça ‘Pandas, ou Era uma Vez em Frankfurt’, desenvolvida para o Zoom, em que os atores Mauro Schames e Nicole Cordery têm a mesma fotografia como fundo Divulgação em telas separadas, um homem e uma mulher diante de uma paisagem coberta de neve ** Ao contrário dos filmes, porém, nas peças apresentadas por Zoom se preocupam e muito em acolher a plateia.
Seja simplesmente abrindo espaço para os espectadores compartilharem impressões após a apresentação, ou incorporando suas observações ao texto, como faz “A Arte de Encarar o Medo” ao pedir que o público escreva no chat seus temores em relação ao coronavírus e faça homenagens àqueles que perderam para a doença.
Em “Pandas”, a produção chega a pedir que os espectadores mantenham os microfones ligados, para que sua respiração seja ouvida pelos participantes.
É o tipo de interação que, conta a professora secundária Célia Dzialovski, de 68 anos, costuma incomodá-la na vida real. Um convite para um debate como o que sucedeu a sessão de “Pandas” a teria feito ir embora logo depois do espetáculo. Mas, com a câmera desligada, ela diz ter se sentido à vontade para compartilhar suas visões.
Além disso, continua Dzialovski, é pouco provável que ela tivesse a oportunidade de ver uma peça como “Pandas” em Miguel Pereira, município a cerca de duas horas do Rio de Janeiro onde ela passa boa parte do tempo e coordena uma escola de ensino médio.
É mais uma vantagem das peças encenadas por Zoom -unir pessoas longe umas das outras, estejam elas diante ou por trás das câmeras.
Nos bastidores, essa descentralização geográfica é comum tanto à “Pandas” quanto a “A Arte de Encarar o Medo”.
Em ambas, há casos de atores que jamais conheceram seus diretores ao vivo -o diretor Bruno Kott só conviveu virtualmente com a atriz Nicole Cordery, e o ator César Siqueira, recém-chegado de Portugal quando a pandemia se instaurou, nunca encontrou o restante dos Satyros.
“Na semana passada, perguntamos a altura dele”, diz García Vázquez. “Ele falou que tinha 1,80 metro e todos ficamos muito assustados. Ele era muito maior do que esperávamos.”
A peça dos Satyros atinge, aliás, o paroxismo disso ao ter em cena uma atriz sueca, Ulrika Malmgren –ela se apresenta direto de Estocolmo, num fuso seis horas à frente do Brasil. García Vázquez afirma que ela e outros atores do país ficaram tão animados com a ferramenta virtual que agora ensaiam um outro projeto com a companhia, a ser apresentada em horários mais adequados para os públicos de outros continentes.
Por aqui, no entanto, há quem relute em chamar as encenações e ensaios por Zoom de teatro. A insatisfação é observada principalmente entre professores e estudantes de cursos de atuação.
“Isso não é mais teatro. É audiovisual”, afirma Leonardo Gonçalves, que leciona técnicas da commedia dell’arte na SP Escola de Teatro há sete anos. “E uma arte audiovisual exige um tratamento de câmera, de luz, de edição. As pessoas estão fazendo qualquer coisa, sem nenhuma preocupação desse tipo, e ainda estão chamando de teatro.”
Gonçalves diz que as peças virtuais são “um grande cavalo de Troia” oferecido à classe artística, no qual fará, segundo ele, alguns atores substituírem os palcos pelos aplicativos mesmo após o fim da pandemia.
Além disso, continua ele, a construção do espaço físico é indispensável às artes cênicas. Após dar duas aulas pelo aplicativo, ele informou a seus chefes não concordar com o modelo online e, preferindo assim lecionar após o fim do período de isolamento social.
Aluna de Gonçalves, Giovanna Leonel, 23, compartilha do mesmo pensamento e afirma que assim como ela, diversos estudantes têm se sentido desestimulados a comparecer às aulas.
Outros profissionais da área, no entanto, têm não só gostado da experiência, como também desejado sua continuidade após a pandemia.
É o caso de Simone Shuba, atriz, diretora e professora no Teatro Escola Macunaíma, que tem dado aulas pelo aplicativo. “Não só acho que é possível, como estamos fazendo”, diz ela. “É uma coisa nova para todos, mas é justamente isso que tem nos movido. A criatividade surge em momentos de dificuldade.”
Diretor de “Pandas”, Bruno Kott argumenta que os pilares de teatro estão, sim, presentes nos espetáculos feitos para o Zoom -sua peça é apresentada ao vivo, sem edição, e é o ator que determina o tempo em cena. “É uma experiência virtual, mas feita para a caixa preta maluca e universal que é a internet”, ele define.
Além disso, prossegue, discutir nomenclaturas é pouco frutífero nesse momento. “A arte transcende separações”, diz.
Fonte: Diário de Cuiabá