Vida na Praça Roosevelt
Livro conta a recuperação urbana e social do espaço a partir da trajetória do grupo de teatro dos Satyros, que rompeu barreiras e se firmou na cena paulistana
Ubiratan Brasil
Teatro e cinemas fechados e ruas freqüentadas especialmente por drogados e prostitutas – a imagem desoladora ainda marca a memória do ator Ivam Cabral e a do diretor Rodolfo García Vázquez quando, em 2000, estiveram pela primeira vez na Praça Roosevelt. Vindos de Curitiba, eles buscavam um local para a sede paulistana de seu grupo, Satyros. Mas o cenário pouco convidativo não foi capaz de desestimulá-los – resistentes, lutaram contra maus agouros, romperam fronteiras sociais e sexuais e conseguiram o que parecia impossível: transformar a Roosevelt em um dos pontos teatrais mais agitados e cobiçados da cidade. A história dessa heróica transformação é tema do livro Os Satyros (Imprensa Oficial, 344 págs., R$ 15), da Coleção Aplauso, que será lançado hoje, às 19 horas, na sede do grupo.
‘Ao observar agora um tamanho movimento onde antes reinava um absoluto abandono, fico até com medo de que a Roosevelt se transforme em Vila Madalena’, brinca Vázquez, que criou o grupo em 1989, ao lado de Cabral. De fato, batizado pela religião do teatro crítico, o Satyros sempre privilegiou, em suas pesquisas, desvendar o comportamento dos seres negados por uma sociedade que não percebe o papel fundamental que eles exercem no equilíbrio da sociedade. ‘Afinal, alguém sempre tem de fazer o trabalho sujo para que a humanidade se salve.’
Eis um dos principais motivos que o grupo encontrou para se estabelecer na Praça Roosevelt, região então habitada por travestis, prostitutas, michês e traficantes. Desse mimetismo, surgiram peças como Transex, A Vida na Praça Roosevelt, Inocência, Os 120 Dias de Sodoma, Kaspar, entre outras, todas escritas e encenadas com um viés humano pouco tratado em outros textos encenados em São Paulo. E transformaram seus dois espaços na praça nos mais destacados do teatro independente paulistano.
‘A urgência sempre nos motivou’, comenta Ivam Cabral, que também lança hoje um livro da Coleção Aplauso, reunindo quatro textos escritos para o teatro (Faz de Conta Que Tem Sol lá fora, Os Cantos de Maldoror, De Profundis e A Herança do Teatro). ‘Daí a decisão de colocarmos em cena nossas inquietações e provocações, que transpiram arte de uma forma intensa.’
Se inicialmente surpreendeu o cenário teatral paulistano (o que lhe custou quase dois anos de profundo ostracismo), o Satyros hoje é palco para uma sucessão de espetáculos, que se revezam de segunda a domingo, uma ciranda vertiginosa que atrai um número crescente de espectadores. Com isso, iluminou-se a Praça Roosevelt: os traficantes se afastaram, e os travestis e transexuais são reconhecidos como habitantes da área, incorporados ao cenário local. E, mesmo que a semelhança com a Vila Madalena esteja longe da realidade, o grupo prepara um novo e ousado passo: abrir uma terceira sala no Jardim Pantanal, em São Miguel Paulista, região carente de arte e abarrotada de injustiça.
Fonte: O Estado de S. Paulo, 15 de dezembro de 2006