SAUDADES | A orquestra invisível da casa amarela

Cresci espremido entre o saxofone das cigarras e o silêncio comprido do interior do Paraná. Ribeirão Claro, cidade tão pequena que o vento, bondosamente, todos os dias, beijava as esquinas antes de ir dormir. Era pobre: quinto de seis filhos, sempre um prato repartido e um sonho racionado. Nosso pai, José, pedreiro que erguia paredes mas nunca conseguiu ler o próprio nome, carregava cal e caligrafia adormecida nos bolsos. Eunice, nossa mãe, chegara só até a quarta série, mas flertava com os livros como quem descobre passagens secretas: lia para iluminar o breu que o mundo insistia em vender a prestação.

Essa casa amarela tinha três quartos minúsculos e janelas cor de céu. Num deles, minha mãe reinava diante da máquina de costura, trocando agulhas por horas e fiapos por esperanças. O dedal marcava o compasso. O pedal, a percussão. Na sala, bem no alto da parede, um rádio — maestro invisível que regia a vida desde a alvorada. Radionovelas saíam dele como se fossem visitas. Disputávamos a voz de cada capítulo com a reverência de quem oferece café coado a um santo.

Foi ali que aprendi a imaginar e a reconhecer timbres e destinos. E foi ali, também, que recebi o presente mais revolucionário que aquele universo de chão batido poderia ofertar. Um radinho de pilha, presente de Natal da minha irmã Irani e do meu cunhado Edelcio, quando tinha dez anos. Ganhei, junto com o aparelho, a mais rara das autonomias: o poder de eleger meus próprios ruídos. De noite, escondido sob o cobertor, atravessava frequências como quem folheia atlas proibidos.

Assim descobri a Rádio Cultura de São Paulo, erudição que soava a latim mesmo quando falava de Beethoven; e a moderna Rádio Excelsior, onde o futuro fazia début para quem quisesse dançar. Os anos 1970 ainda cheiravam a gasolina e ditadura, o Brasil era outro Brasil, e eu, embora menino, já era outro Ivam, costurado pelo zumbido das válvulas, levantado por tijolos que jamais levei às costas, alfabetizado pela sintonia que girava como um globo terráqueo portátil.

A televisão só entrou em casa quando eu tinha dez, onze anos e, ela que me perdoe, chegou tarde. Entre antenas bambas e imagens sem foco, meu coração continuou preferindo as vozes que, sem rosto, podiam ser todas as vozes. Talvez porque, no fundo, eu soubesse que quem nasce entre linhas e tijolos aprende cedo a imaginar o que falta: estúdios, palcos, plateias, mundos inteiros.

Hoje, quando procuro a origem do ofício que abraço, esse de erguer histórias no ar como quem levanta paredes de vento, volto àquela casa amarela de janelas azuis. Volto à máquina de costura marcando o ritmo, ao pai analfabeto traçando fundações invisíveis, ao rádio lá no alto da sala, lembrando que não há pobreza que silencie quem descobre, mesmo num chiado, a possibilidade de futuro.

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
Post criado 1853

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