Sangrando

Aconteceu num domingo, há uns poucos meses.

Eu e Cacilda, nossa vira-latas mais linda do mundo, estamos passeando pelo centro da cidade. Depois de uns giros pela feirinha da praça da República e pelas avenidas Ipiranga e São João, chegamos à nossa Roosevelt.

Estou sentado na borda de uma floreira em frente ao Espaço dos Satyros, enquanto Cacilda se diverte com uma poça d’água. Depois de um tempo, se aproxima uma senhora, uns oitenta anos.

— Nossa, tive uma igualzinha!

— Verdade? Esta é a Cacilda.

— Que nome lindo! Cacilda era o nome de uma tia avó minha. Meu Deus, nunca mais tinha me lembrado dela… Pra ver como o tempo passa…

— É, o tempo voa!

— E parece que foi ontem! Por falar no tempo, ainda hoje pela manhã, estava me lembrando do meu casamento. E sabe há quanto tempo foi isso? Sessenta e dois anos, contadinhos.

— Verdade?

— Por Deus! Hoje faz sessenta e dois anos que eu me casei aqui na igreja da Consolação.

— Dia especial, então. Parabéns! E a senhora sempre morou na Praça?

— Não. Morei a vida toda em Higienópolis. Faz menos de seis meses que cheguei aqui. Vim pra terminar os meus dias aqui.

Não sei direito como continuar a conversa. Estou emocionando.

— Foi onde tudo começou. E eu fui muito apaixonada pelo meu marido, sabe? Meu melhor amigo e meu único homem.

— Que história bonita!

— Acho triste.

Silêncio. Começa a garoar. Ela continua:

— Porque acabou… Como tudo na vida.

Mais silêncio. Estou com vontade de chorar.

— Faz tempo que ele morreu?

— Sabe que faz? Mas parece que foi ontem. Morreu na copa de 70.

— Nossa, isso foi há mais de quarenta anos!

— Mas vivemos 22 anos de pura felicidade.

Naquele momento nós começamos a ficar encharcados. A chuva aumentou.

— E eu vou morrer se não sair dessa chuva. Tenho bronquite crônica e na semana passada fiquei na cama durante cinco dias.

— Então vamos entrar, podemos sentar ali dentro, sugiro apontando para as mesinhas do café do Satyros.

— Não, não. Eu tava precisando sentir a chuva. E está tão bom, não está? Eu gosto de chuva. E com este calor, então!

— Mas vai fazer mal para a senhora. É melhor entrarmos.

— Que nada, se eu morrer vai ser um descanso. Saí pra isso. Quando vi que tava armando temporal, resolvi sair sem sombrinha, sem guarda-chuva, sem nada. Queria mesmo me molhar.

— Não é melhor falarmos com alguém da sua família, algum de seus filhos?

Ela sorri um sorriso encabulado.

— Nasci com o útero seco.

Silêncio.

— Vou indo, então.

— Não quer que eu a acompanhe até sua casa?

Mais silêncio.

— Qual o nome dela mesmo?

— Cacilda.

— Que nome lindo! Cacilda era o nome de uma tia avó minha, diz enquanto vai descendo a rua.

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
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