RESISTÊNCIA | Armaduras de um menino adamado

Hoje eu queria falar de força. Não da força bruta, que impõe músculos e gritos, mas daquela que se esconde nos interstícios da memória, na respiração contida, no corpo que resiste quando o mundo se mostra hostil.

Falo disso porque, nesta manhã, recebi de Alexandre Mate um vídeo – um reels do Instagram, produzido por um rapaz chamado Antonio Silva – em que ele fala sobre o conceito de “criança viada”. Antonio, com delicadeza, conta que, ainda menino, era chamado de “adamado” sem entender o porquê. Mais tarde, pesquisando, descobre que o termo era um adjetivo usado no século XIX para designar uma pessoa afeminada. O vídeo é poético e informativo; e ao final, confesso, eu estava em lágrimas, com um nó na garganta.

Me lembrei, então, de João Silvério Trevisan. Ele narra uma história que tantas vezes me fez levantar. Nascido em Ribeirão Bonito, no interior de São Paulo, viveu a liberdade natural das crianças do campo e, ao mesmo tempo, o peso esmagador de um universo machista e homofóbico. Conta que, certa vez, mesmo sem saber nadar, foi atirado no rio pelos colegas, que gritavam: “é pra você aprender a ser homem”. Enquanto se agarrava ao capim para não se afogar, pensou: “eu sou homem, sim, mas não quero ser igual a vocês”. Ele diz que esse instante o moveu por toda a vida.

E foi inevitável que outra lembrança surgisse, de quando eu tinha 17 anos. Dorisdei era uma moça muito bonita, da minha idade. Havíamos estudado juntos no fundamental e no médio; eu frequentava sua casa, era amigo de seus irmãos, nossos pais eram compadres. Foi ela quem me apresentou a canção que ainda hoje me atravessa feito navalha: Torturas de Amor, de Waldick Soriano – que, descobri depois, também é amada por minha doce Patricia Pillar.

A Dorisdei se apaixonou por Mi, um rapaz que vivia bebendo em alguma mesa do Stop. Eles tiveram um rolinho, mas não deu certo. Numa dessas noites, ela bebeu além da conta e, no meio do bar, começou a cantar Torturas de Amor sem parar, entre risos e gargalhadas, trocando o “ti” por “Mi”:

Hoje que a noite está calma
E que minh’alma esperava por Mi
Apareceste afinal torturando este ser que te adora…

O Stop ficava num sobrado: embaixo, o bar de mesinhas e luz comum; em cima, um espaço mais moderno, com globo e luzes piscantes. Entre os dois, uma escada íngreme. Eu estava encostado na parede, no térreo, bebendo sozinho, quando a Dorisdei e suas amigas subiam e desciam cantando, rindo. Até que, numa dessas passagens, ela parou diante de mim, olhou nos meus olhos e gritou: “Como essa bicha cresceu!”

Riu. Riram todas. Riu o bar inteiro, porque ninguém pôde deixar de ouvir.

Naquele instante, meu corpo se estremeceu por inteiro e, tomado pela vergonha, fiz xixi nas calças. Não sei se alguém percebeu. Só sei que não consegui me mover dali por horas, grudado na parede, enquanto Dorisdei e suas amigas continuavam a passar, repetindo a frase, entre gargalhadas: “como essa bicha cresceu”.

Então, hoje, assistindo ao vídeo do garoto Antonio, foi inevitável me ver de novo menino em Ribeirão Claro, no Paraná, alvo de humilhações pelos traços “adamados” do meu corpo. Foi tempo de sobrevivência dura. Como João, minha armadura nasceu ali: a couraça que me impediu de sucumbir ao escárnio. Mas não era simples discernir o que de fato era meu e o que eu carregava à força, imposto por um mundo inóspito.

E se caminhei, se resisti, é preciso dizer: a violência nunca desapareceu. Hoje, não é raro ouvir frases como “mas eu tenho amigos gays”, ditas como se fossem salvo-conduto contra preconceitos. Parece, às vezes, que dentro da bolha em que vivo, a homofobia tivesse ficado no passado. Mas não ficou.

Os abusos seguem à espreita, sutis, quase invisíveis, mas sempre prontos a enfraquecer. Não foi fácil chegar até aqui. Não é fácil permanecer. Todos os dias, a luta exige novas armaduras.

E, ainda assim, há beleza. A de reconhecer que, de alguma forma, seguimos em frente; que transformamos dor em resistência, e resistência em poesia.

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
Post criado 1910

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Posts Relacionados

Comece a digitar sua pesquisa acima e pressione Enter para pesquisar. Pressione ESC para cancelar.

De volta ao topo