REMINICÊNCIAS | Aquela quinta-feira em que o centro virou camarim

Costumamos dizer que teatro em boa companhia dispensa convite. Basta um aceno e já estamos a caminho. Ontem foi a vez de cruzar o centro com Vanessa Bumagny, partindo da Praça Roosevelt antes de o relógio marcar seis. Optamos pelo trajeto a pé, pelo prazer de colher as camadas da cidade — fachadas art déco, vendedores de capas de celular, o ressoar do Anhangabaú — como quem folheia um álbum antigo enquanto avança. A cada quarteirão, São Paulo exibia mais do que ruas, oferecendo pequenos prelúdios para a peça que nos aguardava no Centro Cultural Banco do Brasil.

Chegamos cedo o bastante para o ritual do cafezinho e, de quebra, espiamos a exposição “Fullgas – artes visuais e anos 1980 no Brasil”. Trezentas obras, duzentos artistas, mil memórias de ombreiras e néon piscando na retina. Quando o relógio tocou sete, fomos até a sala de “Nebulosa de Baco”, nova criação da Cia. Stavis-Damasceno. Já na porta, o diretor Marcos Damasceno nos envolveu naquele abraço que deixa cheiro de camarim na roupa — primeiro ato da noite, ensaio de afeto.

Mas houve um instante ainda mais tocante. Conheci o trabalho da jovem atriz Helena de Jorge Portela, que eu, na verdade, conheço desde pequenina. Filha de Claudete Pereira Jorge, a maior atriz que Curitiba já abrigou (e que nos deixou em 2016), e de Natálio Portela, homem de teatro essencial da cena paranaense, Helena carrega no DNA um farol de palco. Vê-la amadurecida, conduzindo texto e silêncio com a mesma elegância que herdou da mãe, foi como apertar de novo a mão da própria Claudete. Senti um nó na garganta e a agradável certeza de que certas vozes seguem ecoando noutra geração.

No apagar das luzes, começou o beija-beija nas intérpretes, como manda a etiqueta secreta do teatro, e o foyer se encheu de conhecidos: Hélio Gold, Marco Antônio Pâmio e mais uma porção de rostos que transformam fila em quermesse. Hélio, importante diretor de cinema e teatro, dramaturgo e roteirista, pupilo do saudoso Antônio Abujamra, puxou Marcos pelo ombro e disparou: “Se o Abu estivesse vivo, ligava agora e diria: ‘Fui ao teatro e encontrei um diretor melhor que você’ e… pá! Desligava.”

Marcos gargalhou como quem recebe troféu e multa ao mesmo tempo — provocador reconhece provocação de longe. É bom explicar: Damasceno coloca o velho Abu bem no centro de uma cena do espetáculo.

O CCBB mantém uma gentileza quase clandestina: vans que, depois da sessão, deixam o público em estações de metrô e, de lambuja, no estacionamento da Rua da Consolação. Entramos na lotação com as atrizes, o diretor e aquela névoa de pós-espetáculo que paira sobre quem acabou de fazer arte ao vivo. Entre uma lombada e outra, falamos da carpintaria do texto, das pancadas de Baco, de psicanálise e, de repente, eu e Rosane — quarenta anos de amizade carimbada no passaporte das insanidades — percebemos que sobrevivemos a muita coisa: governo, inflação, internet discada, pandemia e, sobretudo, à pressa.

A van despejou cada um no seu destino. Ficou o balanço: café, exposição, teatro, fofoca, van — cabia uma vida inteira naquela noite de quinta-feira. E, enquanto cada saudade seguia seu caminho, entendi que o tempo, embora carrasco, às vezes também é cúmplice. Porque ele leva muita coisa embora, é verdade, mas deixa outras contando piada no colo da gente: as saudades, que doem; e as cumplicidades, que aquecem — como se fossem, elas próprias, uma nebulosa inteira de Baco a nos embriagar de futuro.

 

FOTO: Stock

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
Post criado 1869

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