PONTE | Três corpos, um mesmo fogo

Eu cheguei na psicanálise nos anos 1980. Era um tempo em que o Brasil ainda tateava sua própria liberdade e, talvez por isso, tanta gente buscasse entender o que havia dentro de si. Eu vinha do teatro, e foram dois mestres, Lilian Fleury e Hugo Mengarelli, quem primeiro me apontaram o caminho – pelas veredas de Nelson Rodrigues, onde o inconsciente aparecia em carne viva, feito uma personagem. Foi nesse cenário que encontrei Hélio Pellegrino. Não o conheci em carne, mas em verbo. Primeiro, em suas crônicas publicadas no Jornal do Brasil, mais ou menos nessa época. Fiquei fascinado.

Seu livro A Burrice do Demônio, lançado logo após sua morte, em 1988, foi um acontecimento íntimo, uma espécie de batismo. Hélio escrevia com o coração em chamas, e sua lucidez tinha o tom da indignação amorosa. Amigo de Clarice, Sabino, Otto e Paulo Mendes Campos, fez da palavra uma trincheira habitada por ternura. Nos consultórios, nas praças e nos textos, falava da alma como quem fala de política e de amor, sem jamais separar uma coisa da outra. Poeta, militante, homem de fé e de fúria, acreditava que a psicanálise só fazia sentido se pisasse o barro da vida, se escutasse o povo, se se deixasse contaminar pela rua.

Recentemente, pelo Facebook, encontrei Dora Pellegrino, sua filha. Começamos a conversar, timidamente, como quem se aproxima de uma herança afetiva. Dora é atriz e artista plástica das boas. Pinta como quem respira, com gestos luminosos, cheios de vida e, também, de dor. Há nela algo do olhar do pai, essa maneira de transformar o humano em cor, o pensamento em corpo.

Eu a descobri no ano passado, quando estive no Paço Imperial, no Rio, para ver Tinha, sua exposição com curadoria de João Saldanha, o coreógrafo e bailarino da companhia Ateliê de Coreografia. Era uma mostra sobre a liberdade do gesto, o direito de desenhar sem a prisão de um estilo, de permitir que a mão anteceda a forma e que o olhar se confunda com o mundo. A pintora mergulhava nas referências como quem mergulha em vida. Cada traço parecia dialogar com a pressa do tempo e, ao mesmo tempo, suspender essa urgência. Cronista da imagem, compunha uma crônica visual. Um registro do cotidiano em superfícies planas que, paradoxalmente, abrem fendas de profundidade.

Penso que há uma ponte que nos atravessa. Hélio, cronista e psicanalista. Dora, atriz e artista visual. Eu, dramaturgo, ator e analista. Três corpos, um mesmo fogo. Porque, talvez, a arte e a psicanálise não sejam outra coisa senão isso. A tentativa teimosa de compreender o humano pela beleza e pela dor, pelo verbo e pela carne. E de seguir, como Hélio, com o coração em chamas. Mesmo quando o mundo parece querer apagar a luz.

* Na foto, Hélio Pellegrino e Dora, no início dos anos 1960; e Dora, hoje.

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
Post criado 1966

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