REFLEXÃO | Por um assalto cultural

Aconteceu uns anos atrás. Um cadeirante está entrando num táxi – com toda dificuldade que sua condição lhe impõe – e um transeunte resolve ajudá-lo. Quando, enfim, o rapaz se posiciona no veículo, o homem que parecia ter bom coração sai em disparada roubando-lhe  a bolsa. Leva laptop, celular, carteira, dinheiro, cartões e nossos corações.

Presenciei a cena na, na Praça Roosevelt, em frente à SP Escola de Teatro, do lado do Espaço dos Satyros, na região desta cidade pela qual tenho tanto carinho. A vítima direta do crime foi o Michel Fernandes, jornalista e crítico teatral, que infelizmente nos deixou no ano passado. Indiretamente, porém, somos todos nós as vítimas dessa violência.

Somos extremamente frágeis, essa é a verdade. Nunca sabemos o que vamos encontrar em cada esquina. E não são poucas as áreas perigosas, desoladas, áridas de São Paulo. Mas isso, agora, nem está em questão. Estamos falando da Praça Roosevelt, atualmente – e aparentemente – um lugar seguro e habitado. Nem sempre foi assim.

Além, claro, de ter acontecido com um grande amigo e companheiro de teatro, o crime me machucou tanto porque o cenário foi logo a Praça Roosevelt, uma região que sofreu com tristes décadas de degradação. Era uma área inóspita, sem vida, suja, reduto de traficantes e outros criminosos tão esquecidos quanto ela própria.

Empreendimentos até tentaram, sem êxito, restaurar e devolver o prestígio que a Praça tivera na década de 1960, quando a arte ainda reinava com cinemas e a presença maciça de artistas e boêmios em seus bares e restaurantes. Na década de 1980, a decadência já começara a se instaurar por ali, e nos anos 1990 a situação estaria mais precária que nunca. De espaço da arte, a Praça tornou-se um espaço do crime, terra sem lei evitada pela população.

Pouco antes da virada do milênio, em 2000, nós, dos Satyros, assim a encontramos e ali, convictos de uma mudança, nos estabelecemos. Corremos riscos (e muitos), enfrentamos uma resistência perigosa, mas não abrimos mão de batalhar por aquele lugar. O resultado pode ser conferido hoje, 20 anos depois: a Praça renasceu e agora conta com inúmeros espaços teatrais, bares, restaurantes e prédios residenciais, além de oferecer lazer aos seus frequentadores.

Éramos alguns artistas com muitos sonhos e ideais de transformação. Mas nos fizemos fortes quando reunidos pelo poder mais revolucionário que existe – o poder da arte. O teatro pode, e deve, reivindicar segurança e acessibilidade – no sentido que defendo: a geração de acessos aliada à preservação da individualidade cultural de cada um – para todos.

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
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