REFLEXÃO | O teatro para combater o medo

Não é tarefa simples, para uma pessoa que não conviva no universo teatral, conciliar sua vida pessoal e profissional de modo que elas caminhem lado a lado, mas sejam compreendidas como partes distintas de sua trajetória. Para uma pessoa de teatro, essa dificuldade é potencializada por uma série de fatores que merecem nota.

Uma pessoa “de teatro”, alguém cuja atuação profissional é movida pelas artes cênicas, naturalmente adota formas de expressão diferentes de alguém que não faz parte do ambiente artístico. Ela adota para si – mais especificamente para seu trabalho – uma série de personas e máscaras que, de acordo com seus critérios artísticos e éticos, são capazes de dar vazão a seus pontos de vista e liberar os sentimentos que nela vivem.

Dessa forma, quando um ator sobe ao palco para desempenhar um determinado papel, ele aceita a exposição que é inerente a seu ofício e tenta, na medida do possível, proporcionar uma experiência edificante e visceral aos seus espectadores. Isso pode ser atingido ou não, a depender do olhar do público, e não há nada mais normal do que isso para um artista teatral.

Apesar de oferecer sua imagem numa entrega que, por si só, é corajosa e arriscada, o atuante, como qualquer indivíduo presente na plateia, tem sua própria identidade. Por trás da encenação, portanto, existe uma pessoa que, por mais incrível que pareça, pode não ter absolutamente nada a ver com aquela personagem – e, ouso dizer, na maioria das vezes realmente não tem –, embora as máscaras estejam relacionadas com algo em que ela de fato acredita.

No meu caso, é exatamente assim que o teatro acontece. As personas que interpreto geralmente são cruéis, e eu as utilizo justamente para denunciar, vociferar contra aquilo que me oprime e me sufoca. Para mim, é importante dizer, nunca foi prazeroso entrar em cena. Nem sequer em uma oportunidade houve qualquer tipo de sentimento próximo à felicidade, seja antes, durante ou depois de um ato teatral. Teatro dói.

Essa agressividade cênica se contrapõe ao meu próprio estilo de vida. Sou tímido, reservado e introspectivo, não sou adepto de festas, pouco saio à noite, sou um grande leigo no que diz respeito às atrações noturnas da metrópole e gosto da tranquilidade da minha casa em Parelheiros. Ainda assim, por conta do meu trabalho, da forma como me comporto no palco, transmito – involuntariamente e até contra meu desejo – uma imagem que é antagônica ao meu comportamento pessoal.

Então, me deparo com um dilema que permeia minha vida há muito tempo. Para combater o temor de me tornar uma pessoa careta, rançosa ou viciosa, extravaso minhas emoções no teatro. Sempre que me sinto acuado, reajo de forma impetuosa e agressiva em cena, para que eu me lembre que ainda sou uma pessoa livre. Quero estar aberto ao mundo, pronto para receber e trocar experiências, e nunca poderei me privar disso.

Ser diretor de uma grande instituição como a SP Escola de Teatro – Centro de Formação das Artes do Palco – o maior centro de formação teatral da América Latina – é, indubitavelmente, a maior responsabilidade que já carreguei em minha trajetória profissional. Esta é a escola com que eu sonhei desde muito jovem, o lugar utópico criado por minhas mais distantes fantasias e concretizado a custo de muito trabalho e determinação.

Eu e vários outros artistas investimos tanto nessa realização que não posso deixar de me cobrar para desenvolver um trabalho de excelência. Essa expectativa gera em mim um peso enorme, me sobrecarrega com frequência, e apenas o próprio teatro é capaz de renovar minhas forças e me permitir “enlouquecer”, exteriorizar a pressão do cotidiano. Assim conduzo a minha batalha diária, contra mim mesmo e contra aquilo que tenta me limitar como ser humano.

* Na foto, de Walter Antunes, cena de “A Anjo do Pavilhão Cinco” (2006),
de Aimar Labaki, dirigida por Emilio Di Biasi.

 

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
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