REFLEXÃO | Manual de Improcedência Cênica Aplicada à Web 2.5 ou Uma defesa para Debora Bloch e Paolla Oliveira

Há uma nova cepa de especialistas nascendo a cada semana nas redes sociais, especialmente no Instagram e no TikTok. Entre receitas de banana caramelada e reels com frases de Clarice Lispector que ela nunca escreveu, surgem também os críticos performáticos, sempre prontos a salvar a arte dela mesma. Um deles, muito aplicado, resolveu se debruçar sobre Vale Tudo, marco da dramaturgia brasileira, para disparar críticas ácidas E, sejamos francos, desinformadas, ao trabalho de duas das maiores atrizes do país: Debora Bloch e Paolla Oliveira. A primeira, revivendo a icônica Odete Roitman. A segunda, ressignificando Heleninha Roitman, num desafio que mistura memória afetiva nacional e alta voltagem emocional.

O método do rapaz é curioso: uma espécie de arqueologia seletiva de cartilhas do século passado. Para justificar seu desprezo, recorre a Constantin Stanislavski, Lee Strasberg e Michael Chekhov como se estivesse citando breaking news. Ignora, no entanto, que esses senhores, respeitadíssimos, evidente, viveram e escreveram num tempo em que televisão era coisa de ficção científica. E, ironicamente, eram todos homens brancos escrevendo para um palco burguês de outro continente.

Não é que não sirvam mais. Mas é como usar um mapa do Império Otomano para andar de metrô em São Paulo. Uma romantização perigosa do passado como se ele fosse, ainda hoje, a última palavra sobre tudo. E o pior: usando esses nomes para medir a atuação de atrizes que precisam gravar, em uma semana, o equivalente a três peças inteiras de Tchekhov (o Anton agora), com emoção, decoro e pontualidade. Uma novela não é arte de síntese. É arte de insistência. E resistir é, por si, uma performance radical.

Debora Bloch e Paolla Oliveira são, ambas, atrizes de sofisticação técnica e intuição afiada. Elas conhecem os códigos da televisão brasileira como um pianista conhece as escalas. E, sabem, talvez melhor do que ninguém, como jogar com a câmera, com o tempo, com o improviso do set. São heroínas de uma arte industrial, sim, mas profundamente humana.

Enquanto isso, o crítico, entre uma indignação e outra, resolve demonstrar como “se faz uma cena”. Acreditem: ele interpreta. Sozinho. Na tela do celular. Faz caras, entonações e, quem sabe, alguma ginástica facial. Uma espécie de tutorial de como não fazer. Aquilo que ele acredita ser a entonação certa — como se houvesse um único modo de se atravessar um texto, uma cena, uma emoção.

O que ele não percebe é que Paolla e Debora, ali, sustentam uma obra por meses, equilibrando pressão de audiência, texto mutante, luz, reflexo no brinco, e ainda o peso de serem mulheres num mercado historicamente cruel. E fazem isso com beleza, com coragem, com entrega.

E onde estão os teóricos que pensam o trabalho do ator hoje, que olham para a televisão, para o cinema, para a performance digital sem desdém?

Aqui vão alguns nomes para ajudar nosso crítico-aprendiz a atualizar sua bibliografia:

– Richard Schechner, que pensa a performance como campo expandido, atravessando teatro, televisão, rituais e cultura de massa.

– Erika Fischer-Lichte, com seu pensamento sobre a performatividade e a autorreferência do corpo em cena.

– Josette Féral, que propõe uma compreensão do “teatro performativo” — útil para entender o que acontece na intersecção entre técnica e presença.

– André Carreira, no Brasil, com pesquisas sobre atuação em diferentes espaços e contextos.

Yara de Novaes, brasileira, também, além de atriz de grande presença, é uma das artistas que mais pensa a atuação por dentro, com profundidade e generosidade. Sua prática cênica já é uma teoria viva. Não escreve teoria sistematizada, mas seu nome carrega saber.

Maria Thais, outra diretora brasileira e pesquisadora, com profunda articulação entre o corpo do ator e pensamento filosófico. Referência na discussão sobre a cena contemporânea no Brasil.

– Elisabeth Angel-Perez, que atualiza Stanislavski à luz do contemporâneo.

– E até Philippe Goudard, pensando o corpo do ator na relação com o tempo e com o risco.

Mas, claro, tudo isso exige leitura. E escuta.

Talvez, antes de citar Stanislavski, fosse interessante assistir mais à Debora. Antes de dizer que Paolla “errou o tom”, talvez perguntar: que tom ele esperava? O tom do que acha que é teatro, ou o tom do que, de fato, é a vida filtrada por uma câmera em tempo real, ao longo de 200 capítulos?

A crítica, para ser crítica de verdade, precisa vir acompanhada de generosidade. E, acima de tudo, de conhecimento de causa. Senão, vira só ruído. Ou, pior, entretenimento travestido de autoridade.

E para isso, francamente, Vale Tudo.

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
Post criado 1877

2 comentários em “REFLEXÃO | Manual de Improcedência Cênica Aplicada à Web 2.5 ou Uma defesa para Debora Bloch e Paolla Oliveira

  1. Parabéns aprendi muito neste texto, não sou crítica de arte, mas tenho acompanhado o trabalho de ambas atrizes e elas entregam a alma. Obrigada por nos ensinar o que é crítica com conhecimento profundo e generosidade 🙏

  2. Isso sim, é uma aula. Eu já estava querendo escrever sobre esse infeliz, mas nunca teria essa propriedade, vinda de você – esse sim, um dos maiores atores que esse Brasil já viu. Que texto necessário. Chega de escalador de social media, que não conseguiu lograr sucesso de um lado e agora quer fazê-lo em cima do sucesso de outrem.
    Obrigado, Ivam. Você é um Oásis nesse deserto de desinformação que estamos.

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