Ontem fui ao cinema assistir Homem com H. Me sentei na sala escura como quem deposita o ouvido num velho vinil, à espera do primeiro estalo da agulha. Mal as luzes se apagaram, o filme de Esmir Filho abriu sobre a tela uma dobra do tempo: minha infância latejava ali, naquele menino que, aos dez anos, ouviu pela primeira vez O Vira no rádio da cozinha e soube — sem entender ainda porquê — que a voz também pode ser clarão, máscara, ferida. Avançou um rolo e lá estava o rapaz de dezoito, recém‑chegado a Curitiba, atravessando a Praça Santos Andrade sob o vendaval da canção Homem com H, que espocava nas janelas como um manifesto de carne viva.
A música, lembrei, é sismógrafo de memória. Captura tremores que a razão arquiva sem legenda. Cada acorde do filme me devolveu a geografia íntima de presságios: cadernos rabiscados com letras de Secos & Molhados, inferninhos onde dançávamos para que o corpo descobrisse seu próprio vocabulário, madrugadas em que nenhuma polícia era capaz de conter o incêndio dos 20 anos. Jesuíta Barbosa, em sua entrega quase premonitória, não interpreta Ney Matogrosso: ele rasga o tecido da tela para abrir um corredor entre gerações.
Mas há outro solo ressoando sob a música — o solo político. O Brasil que vê Ney ascender parecia, então, inclinado a um futuro insuspeito: democracia a caminho, invenção estética em ebulição, a hipótese de que poderíamos reinventar a nós mesmos fora do molde colonial. Hoje, assistindo ao espelho invertido da história, descubro que caminhamos para trás. Falhamos em quase todas as tentativas: perdemos projetos, esperanças, talvez o pacto mínimo de convivência. E, no entanto, lá está Ney — centelha persistente — lembrando que a insubmissão ainda é possível, mesmo quando o país adota o cinto de segurança do autoritarismo.
Entre a utopia truncada e o presente claudicante, o filme convoca o fantasma da AIDS: anos em que a morte rondava com seu coldre invisível, estendendo um véu sobre quem, a poucos passos, jurava a eternidade do desejo. Éramos muito jovens. Tínhamos só vinte anos e, de repente, colecionávamos obituários: amigos, amantes, paixões — cada partida um ponto cego no mapa que insistíamos em atravessar. Não tínhamos outra opção. Esmir Filho enquadra esse tempo sem ufanismo, pousando a câmera sobre o terror discreto que ensina a dançar com o penhasco. O resultado é doloroso como a lembrança de números que já não chamam ninguém, mas ainda assim cintila porque faz da ausência um coro.
Saí do cinema sentindo que carregava fitas K‑7 rebobinadas no peito: não para refazer o passado, mas para impedir que o silêncio carimbasse tudo como derrota. A noite, lá fora, parecia respirar no ritmo da percussão que acompanha Rosa de Hiroshima — como se a bomba já tivesse explodido, mas as pétalas insistissem em florir no ar.
No fim, Homem com H não é só biografia de um artista; é arqueologia de um canto que escavou frestas em cada um de nós. Um lembrete de que a voz — quando se recusa a dobrar o joelho — contagia o tempo, recruta memórias, convoca futuros. E talvez, se ainda houver país depois deste refluxo, possamos agradecê‑lo à tenacidade de quem nunca se contentou em cantar afinado: quis, antes, cantar a sua verdade.