A dramaturga Daniela Pereira de Carvalho ministrou recentemente um curso de escrita teatral na CAL – Casa das Artes de Laranjeiras, no Rio de Janeiro. Desse encontro, entre rigor, escuta e invenção nasceu Acesso, texto de Daniela Tozzi, que conheci hoje numa leitura generosa realizada pela própria autora, também atriz, durante uma leitura no Microsoft Teams. A escuta, ainda que mediada pela tela, foi daquelas que deslocam: havia ali um corpo pensando, dizendo e respirando cada palavra.
Acesso, escrita como um solo para ser interpretada por uma única atriz, acompanha Olivia, que passa horas no pronto-socorro de um hospital público à espera de atendimento para sua companheira, Alice, que luta para respirar. Nessa espera – tão longa quanto insuportável – Olivia é invadida por memórias, medos e pensamentos que escancaram seu desamparo. O hospital torna-se um retrato concentrado do país e de sua dor coletiva: a enfermeira Judith, exaurida e ainda assombrada pela pandemia; o motoboy ferido; o vendedor de paçoca esfaqueado; o médico que confessa a exaustão ética da profissão; e Gabriel, o “Homem Esqueleto”, figura-limite da falência do corpo. É um mundo em colapso, atravessado por tudo aquilo que falta.
Ao final, Alice narra sua própria experiência de quase-morte e recebe alta. Nada se resolve plenamente –mas algo, ainda assim, insiste. Acesso pergunta: como continuar respirando quando falta ar? Talvez a peça mesma responda: respirando como se pode.
Movido pelo impacto da leitura, quis pensar um pouco mais sobre o que ouvi.
Acesso pertence a essa linhagem rara em que a dramaturgia opera quase como um setting analítico. Não pelo formato, mas pela ética. O texto se organiza como matéria psíquica em busca de nome: nada se fecha, nada se acomoda. É um texto que pulsa como os sonhos – fragmentado, elíptico, coerente apenas para quem aceita mergulhar no idioma de sua própria dor.
Desde a primeira imagem – Olivia observando a mulher que limpa e nunca termina de limpar – percebe-se que Tozzi escolhe olhar para aquilo que a psicanálise reconhece como repetição necessária. O eterno retorno do gesto impossível, esse trabalho de Sísifo que mantém a vida minimamente habitável. Freud veria aqui o esforço do Eu para sustentar alguma continuidade diante do caos; Bion, uma tentativa primeira de transformar experiência bruta em experiência pensável. Olivia vê – e ao ver, é vista. Esse duplo movimento inaugura a peça.
Embora seja um solo, Acesso transborda de vozes. E aqui reside um dos achados mais precisos de Tozzi: ela compreende, sem precisar enunciar, que o Eu não é uno. Falar sozinho é sempre falar com muitos. Cada pensamento carrega restos, sombras, ruídos, fantasmas. Olivia fala com o senhor ao lado, com suas memórias, com o medo que não nomeia. Judith fala da pandemia como quem fala de um trauma alojado no corpo. Alice sussurra entre apagamento e retorno. A mãe de Gabriel fala pelo que já não fala mais. São vozes que a psicanálise reconhece: a multiplicidade interna que nos funda e, ao mesmo tempo, nos desnorteia.
O hospital que Tozzi constrói não é cenário, mas estado psíquico. É o inconsciente coletivo saturado, o trauma social naturalizado, o país exausto projetado à luz fria do pronto-socorro. Nesse lugar onde urgência e indiferença se tocam, os personagens encarnam aquilo que Freud chamou de desamparo originário – a impossibilidade de sobreviver sem o outro. Olivia respira mal porque o amor respira mal. A falta de ar de Alice torna-se a sua própria falta de ar: é a experiência matriz da vida psíquica.
Quando Alice desaparece, o texto mergulha num território que Winnicott descreve tão bem: o do retorno ao desamparo absoluto. Olivia não perde apenas a companheira; perde o chão simbólico. O calmante administrado funciona como uma intervenção de urgência da função alfa de Bion – o corpo precisa conter o terror para que a mente não se desintegre.
Gabriel, o Homem Esqueleto, surge como figura do inominável, aquilo que retorna como trauma porque nunca encontrou palavra. Sua mãe carrega o luto antecipado – o luto pelo que ainda respira, mas já não está. É um dos momentos mais ousados do texto: reconhecer que há dores que não se superam, apenas se reconhecem.
Tozzi inclui ainda figuras que alargam a tessitura do real: o motoboy cuja fala devolve a pulsão de vida em sua forma mais bruta; o vendedor de paçoca que aprendeu a chorar como ofício – encenando, sem saber, a “verdade sem proteção” de Grotowski; e o Dr. Jairo, que expõe o esgotamento de quem sustenta diariamente a vida dos outros. São irrupções do “isso” freudiano – forças pulsionais que atravessam o humano sem pedir permissão.
Quando Alice narra sua quase-morte, o texto alcança uma imagem de precisão clínica: o filho no alto da escada, inalcançável, é símbolo da última ligação da vida tentando impedir o apagamento. É limiar, é fronteira, é retorno.
O gesto final não é resolução: é possibilidade. Alice recebe alta. Olivia respira. O mundo não melhora, mas a vida insiste. É nessa insistência que reside a força de Acesso: nada se cura, mas algo se reconecta. Há continuidade suficiente para seguir.
O teatro, aqui, cumpre o papel que a psicanálise conhece tão bem: lembrar o que tentamos esquecer. A pandemia, o luto, a precariedade, a violência cotidiana, o medo de perder quem se ama – tudo aparece não como tese, mas como experiência sensível. Tozzi devolve ao palco a responsabilidade ética de não apagar o que ainda pulsa.
E então compreendemos o título. “Acesso” não é entrada; é permeabilidade. É deixar o outro atravessar. É reconhecer que a dor do outro nos diz respeito porque somos feitos das mesmas fissuras. A peça investiga, em última instância, a pergunta que sustenta tanto a clínica quanto a arte:
Como atravessar o desespero sem perder a ternura?
Daniela Tozzi responde como grande dramaturga: não respondendo. Apenas permitindo que o ar circule – às vezes fraco, às vezes falho, mas ainda vivo.
E talvez seja isso que o teatro, quando realmente importa, ainda oferece: não o alívio, mas a possibilidade de continuar respirando.
