Peças feitas especialmente para plataformas online mostram que uma apropriação inventiva das novas tecnologias é muito mais do que mero paliativo para prolongar a vida de um paciente moribundo
por Patrick Pessoa
“Há muito tempo eu escuto esse papo furado dizendo que o samba acabou/ Só se foi quando o dia clareou”, escreveu Paulinho da Viola em uma canção inesquecível na qual ridicularizava os profetas do apocalipse do samba. Como o samba, nesses tempos de Covid, está mais vivo do que nunca, mostrando nas plataformas virtuais seu caráter lúcido, lúdico e terapêutico (as magníficas lives diárias de Tereza Cristina não me deixam mentir!), os profetas do apocalipse que sempre pululam em tempos de crise encontraram um novo alvo: o teatro.
Como, se perguntam os profetas do apocalipse do teatro, uma arte toda feita da presença viva de corpos em cena e na plateia, compartilhando um mesmo espaço-tempo, poderia sobreviver numa época de isolamento social?
Se tivesse aceitado passivamente sentenças de morte infundadas como essa, o teatro teria morrido já no berço. Imaginem o que teria acontecido se os poetas dramáticos tivessem reagido com um muxoxo resignado a seu banimento da República de Platão!
Mas desde os primórdios até hoje em dia, contra todas as perseguições, o teatro resiste.
E as resistências, tanto num nível político quanto estético, exigem sempre o acolhimento do novo: novas maneiras de ser e de viver, novos públicos, novas tecnologias. Se os profetas do apocalipse apegam-se sempre à mais reacionária de todas as sabedorias (“Antigamente é que era bom!”), a gente do teatro finge que não ouve e sai por aí cantarolando Raulzito: “Eu prefiro ser essa metamorfose ambulante do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo”.
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No atual contexto de pandemia, diversas peças feitas especialmente para plataformas virtuais têm mostrado que uma apropriação inventiva das novas tecnologias é muito mais do que mero paliativo para prolongar a vida de um paciente moribundo. O novo “teatro no zoom” não é um teatro zumbi que apenas propiciaria de forma mortificada a recordação dolorosa de uma experiência para sempre perdida. Essa prótese tecnológica, em vez de substituir imperfeitamente uma experiência teatral dita natural, nos lembra que na realidade nunca houve um “teatro natural”.
“O” teatro (natural) não existe. Existem teatros. “A” linguagem teatral não existe. Existem distintas poéticas. E essas diferentes poéticas sempre foram largamente determinadas pelo modo como os encenadores do passado e do presente lidaram com as tecnologias à sua disposição. Desde o deus ex machina condenado por Aristóteles, passando pelas projeções em cinema de Piscator, as peças radiofônicas e o teleteatro amplamente difundidos no século XX, até as hibridizações mais contemporâneas do drama com o vídeo, a performance, a música, a dança e as artes visuais, é impossível mencionar qualquer teatro que não tenha sido em alguma medida tecnológico. Mesmo o teatro mais “natural” que se possa imaginar depende ao menos do domínio técnico do corpo e da voz por parte dos atores, para não falar das tecnologias mobilizadas por cenógrafos, dramaturgos, músicos, encenadores…
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Por isso, em vez de choramingarmos lamentando a momentânea inacessibilidade do tipo de tecnologia (e do tipo de encontro) com que estávamos acostumados, é mais produtivo exercitarmos novas formas de ver e sentir que acompanhem a atual mutação tecnológica do teatro. Lembrando que, como ganho secundário dessa outra forma de difusão das peças, um público potencialmente muito mais amplo do que o habitual está tendo acesso a produções teatrais.
Claro que nem todas as peças feitas para plataformas virtuais produzirão o engajamento físico e espiritual dos espectadores, mas isso tampouco era garantido nas produções convencionais. Se, como sabe qualquer amante de cinema ou de literatura, a mediação da tela (ou mesmo do papel) nunca inviabilizou a priori a experiência visceral e por vezes corpórea produzida pela poesia (em seu sentido mais amplo), não há que se ter medo das peças feitas para plataformas virtuais. Como em qualquer experiência estética, há que se aprender a ler cada proposição em seus próprios termos tecnológicos, caso a caso, na comparação com nossos próprios saberes e afetos – o que, aliás, sempre foi e continua sendo um dos grandes baratos de ir ao teatro.
Apesar de tudo que disse acima, confesso que mal posso esperar pela reabertura dos teatros.
Fonte:O Globo