PSICANÁLISE | Resposta à carta da IF-EPFCL: quando a escuta recusa o Outro

Caros colegas da Internacional dos Fóruns da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – IF-EPFCL,

Em relação ao Manifesto Por uma Psicanálise Decolonial, lançado pelo Coletivo Psicanálise nas Brechas, li a carta de vocês com atenção e inquietação. Preocupa-me sobretudo o esforço em reduzir esse movimento a uma reação episódica ou a uma simples distorção discursiva. O Manifesto não é fruto de uma manobra, tampouco de uma instrumentalização da palavra. Trata-se de um gesto político e ético – maduro, necessário e há muito gestado – que emerge de um longo processo histórico de deslocamentos e insurgências. É a voz de sujeitos que, dentro e fora da psicanálise, têm sido silenciados há séculos.

É fácil, como reflete Isildinha Baptista Nogueira, fazer da neutralidade um modo elegante de perpetuar privilégios. Nós, sujeitos brancos, cisgêneros, com acesso a circulação epistêmica europeia, com frequência confundimos escuta com tolerância, e hospitalidade com condescendência. Acolhemos a alteridade apenas enquanto ela não perturba a estrutura da casa onde moramos – essa mesma casa construída sobre os escombros da escravidão e do colonialismo.

Frantz Fanon nos advertiu que o colonialismo não é apenas um fato político, mas uma estrutura psíquica. Ele habita o corpo, a linguagem, o gesto analítico. E quando a psicanálise, diante dessa constatação, insiste em afirmar sua “universalidade”, o que se revela é sua cegueira: a recusa de perceber-se enredada em uma geopolítica da exclusão.

Não se trata de criar cisões entre a “psicanálise brasileira” e a “psicanálise parisiense”, mas de reconhecer que os lugares de enunciação importam. E que, para quem vive nos trópicos, em corpos racializados, transgenerificados ou empobrecidos, as palavras da metrópole por vezes chegam como espectros de um saber que sempre nos leu de fora. Ou nem nos leu.

O incômodo que alguns expressam diante do manifesto é, em si, sintomático. Ele revela o quanto o discurso analítico pode se tornar intolerante à diferença quando esta não mais se submete. Não buscamos cancelamento. Buscamos decolonização – uma palavra incômoda, porque exige redistribuição de saberes, escuta verdadeira e renúncia a centralidades.

Reafirmo, como alguém que compartilha com muitos de vocês o compromisso ético com a psicanálise, que não há oposição entre rigor teórico e sensibilidade histórica. Pelo contrário: a psicanálise que não interroga seus próprios alicerces culturais e raciais corre o risco de se tornar ferramenta de domesticação – e não de emancipação.

O manifesto não foi um desvio. Foi um ato de fidelidade radical ao que a psicanálise tem de mais potente: a coragem de escutar o que fere, o que escapa, o que rompe.

Com estima,

Ivam Cabral

Ilustração: Rafaela Gonçalves, 2023

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
Post criado 1901

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