PSICANÁLISE | O difícil ofício de recomeçar

Eu gosto de recomeços. Eles me obrigam a lidar com aquilo que mais tememos: o real da falta, o abismo do ainda-não-elaborado. Porque recomeçar não é simplesmente dar uma nova chance ao futuro. É topar o risco de rever o que passou. É retornar ao mesmo ponto da curva, como quem deseja fazer diferente e, no entanto, descobre que o traço da repetição é mais persistente do que a vontade de mudança.

Há sempre algo de quentinho na dor.

A psicanálise nos ensina que o sujeito é, antes de tudo, um repetidor. Repetimos o amor que não recebemos, o gesto que nos feriu, a espera que nos tornou reféns. Repetimos, porque ainda não conseguimos simbolizar. A repetição é o ensaio da elaboração. E, paradoxalmente, sua maior resistência. É como se o inconsciente dissesse: “volta lá, ainda não acabou”. E voltamos. Inúmeras e repetidas vezes. Com os mesmos medos, as mesmas falas, os mesmos erros cuidadosamente atualizados.

Mas há algo de sagrado nesse ciclo. Quando a vida nos empurra de novo à cena – em uma entrevista, uma escolha, uma aposta profissional –, ela está lá, de algum modo, convocando o trabalho do luto. O luto daquilo que não foi, do que não deu certo, do que nos escapou sem sequer termos compreendido o porquê. Cada recomeço é também uma miniatura de análise. Um campo de transferência, onde velhos fantasmas se disfarçam de novas oportunidades.

Recomeçar exige coragem para suportar o tempo da travessia. Porque elaborar dói. Elaborar é rasgar a carne psíquica que se formou como defesa. É abrir espaço para o vazio e, ainda assim, permanecer. É reconhecer que o desejo – esse motor tão íntimo e tão esquivo – raramente se revela de pronto. Ele se anuncia nas frestas, nos lapsos, nas pequenas sabotagens do cotidiano.

E é por isso que recomeços nunca são lineares. Eles não são promessas de felicidade, mas convites à escuta. Uma escuta de si, do outro, e do silêncio que se instala quando a palavra ainda não sabe como nomear. É nesse hiato, entre o que se repete e o que tenta nascer, que algo de nós pode, finalmente, se transformar.

Talvez seja essa a verdadeira tarefa de quem se lança num novo processo, seja ele seletivo, amoroso ou existencial. Porque precisamos sustentar o desejo sem precisar ter razão. E suportar a incerteza como matéria viva da criação, também. E só então, quem sabe, reconhecer que cada recomeço é uma forma disfarçada de cura. Um modo poético e doloroso de dizer ao inconsciente: sim, eu continuo.

Photo: INSTAGRAM @artbasel

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
Post criado 1966

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