Confesso: até ontem eu só conhecia o amor canino no tempo em que os cães já vinham prontos, com suas manias adultas meticulosamente estruturadas. Cacilda e Chico chegaram à minha porta assim — maduros, donos de si, quase professores zen do afeto. Doze anos inteiros vivi à sombra benevolente dessa dupla, e tamanha foi a […]
OUTONO | A Doçura que Nenhuma Pressa Alcança
O outono chegou de mansinho, declarando guerra ao verão: se instalou independente das birras do verão que insistia em não ir embora. Mas veio bonito, deixando nas manhãs um frio que arrepiou primeiro a pele, depois as lembranças. É curioso como a queda discreta da temperatura parece baixar também a guarda da alma. De repente, […]
SAUDADE | Nublar o céu para acender por dentro
Acordei com o relógio prometendo pressa: véspera de Dia das Mães, rota relâmpago Congonhas–Curitiba, a mala meio vazia e Guadalupe – nossa mini-golden recém-alfabetizada em travessuras – entregue aos cuidados de Elisa, de última hora. No avião, tentava medir a distância até as lembranças, mas elas decolaram primeiro: atravessaram a janela oval, misturaram-se às nuvens […]
UMA CANÇÃO | Epifania das memórias encobridoras
Em Curitiba, domingo, missa das onze na Igreja de Santa Felicidade. Eu o reconheci pela respiração entrecortada antes mesmo de notar os olhos marejados. Ele vinha de onde a liturgia, em vez de consolo, lhe abrira a represa da infância. “Você se lembra do rosto da nossa mãe quando a gente era criança?”, me perguntou, […]
CRÔNICA | Dialetos do tempo
Nasci numa casa de madeira amarela, janelas azuis — o ponto onde o asfalto desistia e começava o mato. Era o quinto de seis filhos: um pedreiro que lia o mundo com as mãos, uma costureira que conseguiu estudar só até a quarta série. Ali a pobreza não era drama, mas substância: como a gravidade, […]
FESTA | Dia das mães
Quando criança, eu e meus cinco irmãos vivíamos com meus pais numa pequenina casa de madeira amarela, com janelas azuis. Éramos bem pobres e, quando chovia, a casa se enchia de enormes goteiras. Quando surgia um temporal — e, não sei porque, naquele tempo vinham sempre de madrugada —, éramos acordados pela minha mãe que, […]
CRÔNICA | Manual de Sobrevivência para Corpos em Alerta
Quando a tela escurece depois dos créditos de Homem com H, retrato luminoso que Esmir Filho compôs de Ney Matogrosso, algo permanece aceso. É como se o filme deixasse um candelabro aceso dentro da gente, projetando sombras longas de um tempo que já não cabe mais na memória. A luz vacila, mas insiste: lembra a gente de […]
REFLEXÃO | Entre Privilégio e Direito: Cartografia do Acesso
Chamar alguém de privilegiado tornou‑se, nos últimos anos, um atalho retórico que oscila entre denúncia moral e diagnóstico sociológico. Mas, como qualquer atalho, ele oculta a topografia que importa: quem decide o traçado, quem paga o pedágio, quem chega primeiro. Nasci à margem desse mapa. Quinto dos seis filhos de um pedreiro analfabeto e de […]
REFLEXÃO | “Homem com H”: arqueologia de um canto que atravessa corpos e décadas
Ontem fui ao cinema assistir Homem com H. Me sentei na sala escura como quem deposita o ouvido num velho vinil, à espera do primeiro estalo da agulha. Mal as luzes se apagaram, o filme de Esmir Filho abriu sobre a tela uma dobra do tempo: minha infância latejava ali, naquele menino que, aos dez anos, […]
CELEBRAÇÃO | Milton Santos: quando a periferia é origem
Se ainda estivesse entre nós, o geógrafo baiano Milton Santos faria aniversário hoje. Duvido, porém, que soprasse velinhas; antes, escancararia janelas, convidando o mundo a atravessar o mapa que nos ensinou a redesenhar — aquele em que bordas são elásticos e o centro, sempre, ponto de fuga para outro centro. Foi ele quem me convenceu de […]