Cresci num território de vozes femininas — duas irmãs de sangue, as amigas delas, as primas, as tias e muitas mulheres que entravam sem bater, ocupavam a sala e faziam do nosso quintal um palco. Embora houvesse quatro irmãos, quem regia a partitura doméstica eram elas. Decidiam o que comer, as tarefas, até o tom […]
SAUDADES | A orquestra invisível da casa amarela
Cresci espremido entre o saxofone das cigarras e o silêncio comprido do interior do Paraná. Ribeirão Claro, cidade tão pequena que o vento, bondosamente, todos os dias, beijava as esquinas antes de ir dormir. Era pobre: quinto de seis filhos, sempre um prato repartido e um sonho racionado. Nosso pai, José, pedreiro que erguia paredes […]
TEMPO | Um relógio que late antes do sol
Sei que existem pessoas que acordam com o canto do galo. Eu desperto com o latido da responsabilidade que atende pelo nome de Guadalupe. Desde que a pequena, uma mini-golden com pretensões de gerente de fábrica, entrou em cena, meu despertador toca às 6h30, mas é Lupita quem assina o ponto. Basta o primeiro tilintar […]
ESPELHO SOCIAL | Geografia do Reflexo
Na sala de casa há um espelho tão grande que parece ter entrado em cena por engano. Veio do cenário de uma peça dos Satyros. Ficou porque, dizem, espelho de cristal assinado não se dispensa assim. Quem o visita costuma elogiá-lo pelas esquadrias finas ou pela profundidade que empresta à sala. Eu o vejo como […]
NAS ALTURAS | Laboratório de afetos
Passei a infância suspenso numa geografia frondosa — cartógrafo mirim que desenhava o mundo não em cadernos, mas na altitude dos galhos. No quintal de casa, um abacateiro ancião nos emprestava a copa como varanda. Ali, eu lia e fazia lições de matemática enquanto formigas cruzavam o caderno e os livros. Meu primeiro grande projeto […]
FRESTA | A Gravidade dos Abraços
Escorando o corpo na quina da tarde, desci à estação Sé do metrô e vi o que já nasce comum às novas gerações: dois amantes — tão jovens que ainda cheiravam a avisos de aula vaga — embalados na escada rolante, lábios entrelaçados como quem descobre o verbo “arder”. Talvez nem soubessem que existiam tempos […]
DESPEDIDA | O Ensaio Invisível das Despedidas
Eu estava passeando pelo Instagram da Cléo De Páris quando me deparei com um post dela com a frase “a vida não avisa quando algo está acontecendo pela última vez.” Então eu pensei nos gestos que acontecem como sussurros fora de um roteiro preestabelecido e que só iremos saber que era cena final quando a luz já se apagou. Porque se […]
REFLEXÃO | Dramaturgismo — Arquitetura Invisível da Cena (ou: O teatro começa quando alguém pergunta “por quê?”)
Permitam-me começar este texto com uma confidência: eu sou o dramaturgista da SP Escola de Teatro. Desde o primeiro risco no papel, venho costurando, muitas vezes em silêncio, o espetáculo institucional e pedagógico que hoje se apresenta como referência – da escolha de Marici Salomão para comandar o curso de Dramaturgia à chegada de Beth […]
REMINICÊNCIAS | Aquela quinta-feira em que o centro virou camarim
Costumamos dizer que teatro em boa companhia dispensa convite. Basta um aceno e já estamos a caminho. Ontem foi a vez de cruzar o centro com Vanessa Bumagny, partindo da Praça Roosevelt antes de o relógio marcar seis. Optamos pelo trajeto a pé, pelo prazer de colher as camadas da cidade — fachadas art déco, […]
#FICAMUGUNZA | Pronunciamento da Cia. de Teatro Os Satyros em defesa do Teatro de Contêiner Mugunzá
O que está prestes a ser arrancado da região da Luz não é apenas um punhado de contêineres empilhados com engenho. É um pulmão cívico que, desde 2016, respira arte onde antes só havia ferrugem e abandono. Ali, a Cia. Mugunzá investiu seus próprios recursos para erguer o Teatro de Contêiner — um gesto de […]