O outono chegou de mansinho, declarando guerra ao verão: se instalou independente das birras do verão que insistia em não ir embora. Mas veio bonito, deixando nas manhãs um frio que arrepiou primeiro a pele, depois as lembranças. É curioso como a queda discreta da temperatura parece baixar também a guarda da alma. De repente, as emoções que mantínhamos em silêncio ganham fôlego, como folhas que o vento desprende dos galhos mais altos. Tenho caminhado por essa estação com a sensação de que carrego dois relógios: um mede os minutos que escapam nas tarefas sem encanto; o outro, invisível e exato, marca o compasso daquilo que amadureceu em mim — o entendimento de que o tempo, quando bem digerido, produz uma doçura que nenhuma pressa alcança.
Nem sempre foi assim. Meses atrás, tropecei em jogos de poder que fingiam ser afeto: sorrisos que pediam o que não obtiveram por mérito; gestos generosos só na aparência, prontos a cobrar tributos em silêncio. Percebi, tarde e com vergonha, que a corte que me cercava venerava mais a moldura que a tela, estremecendo a cada rachadura que ameaçava a pintura que haviam idealizado para si. Eu, solitário diante do estrago, chorei. Não pelos outros, mas por mim. Por ter encolhido os ombros, por aceitar palavras enviesadas como se fossem só mal-entendidos. Foi um luto miúdo — daqueles que ninguém percebe, mas que mudam o relevo da nossa confiança.
Nesse intervalo de dores discretas, notei como o privilégio, quando naturalizado, vira miopia: quem nasceu sob cúpulas aquecidas imagina que a vida é sempre primavera. Não entende que, longe das estufas, as plantas aprendem a brotar na adversidade e a florescer apesar das geadas. Minha mágoa, confesso, não veio da ofensa em si, mas da cegueira alheia — do espanto genuíno com o fato de que o mundo custa mais caro a quem nunca teve bônus de origem. Levei tempo para reconhecer que há distâncias que não se encurtam à força de explicações. Exigem antes silêncio, recuo, uma espécie de poda interior que preserva o caule para novos ramos.
E, no entanto, continuo aqui, interessado em crescer — ainda que torto, como árvore que se inclina para buscar luz. Descobri que a sabedoria não se ocupa só de respostas: ela aprende a desfrutar do desequilíbrio, a achar beleza na vertigem. Há quem veja nisso perda de impulso. Para mim, é outra forma de caminhar, com passos menos barulhentos e mais atentos às texturas do chão. É verdade que o tempo rouba performances. Mas devolve, como quem paga juros, um senso de proporção que impede os abismos de se fantasiar de atalhos.
Agora, quando o vento de outono embaraça meus pensamentos, deixo que a melancolia faça seu trabalho. Permito-lhe varrer o pó dos móveis da memória, revelar riscos nas paredes — e até escrever bilhetes na poeira: “Segue.” Porque, apesar de tudo, sigo. Carrego nostalgia, sim, mas também a paz possível de quem já não precisa provar nada ao relógio dos outros. Se os dias não me entregam euforia, oferecem, ao menos, esse sossego maduro que sabe acolher os amores improváveis, as horas livres, o café fumegante que aquece mãos e dúvidas.
No fim das contas, descubro que o outono não é despedida: é promessa de sementes escondidas sob folhas secas. Entre uma decepção e outra, brota um gesto de gentileza inesperada; entre lágrimas antigas e risos tímidos, germina uma vontade nova de aprender. E eu, que tantas vezes temi o vazio, agora agradeço cada clarão de espaço: é nele que caberão as próximas floradas.
Você escreve bonito…