Uma concentração de energia se expande quando um ator entra em contato consigo próprio. Há nesse pequeno gesto uma manifestação que desencadeia uma maior percepção de si, mais sublime, redimensionada, muito diferente de seus momentos fora do palco. Esse ator se sente pleno quando se transforma no outro, mantendo-se ainda assim vivo, dando sentido à sua metamorfose, talvez o fator mais importante do fenômeno teatral.
A pré-atuação é o momento que antecede essa metamorfose; é o instante em que o ator permite a evocação de todo o seu ofício, tudo o que foi catalogado até ali: os elementos descobertos no trabalho de mesa, em seu treinamento pessoal, nos ensaios. Uma síntese que se desencadeia num momento sutil que, quando acontece, não é mais. Tudo o que se pode perceber no momento da pré-atuação é percebido em cena, e não em si, mas na memória do espectador, porque quando se torna perceptível já não mais o é.
Esse instante pode ser relacionado com os movimentos da Biomecânica. Para a execução de um bom salto, é necessário que o corpo todo se mobilize para essa ação. Assim, ao salto antecede, na maioria das vezes, um movimento de flexão dos joelhos, numa oposição da força à extensão. Esse gesto não dá garantias de uma boa execução do salto. Porém, sem ele, a possibilidade de um resultado satisfatório torna-se infinitamente menor.
Cada atuação é uma sequência de pré-atuações; é sempre a atuação atual que prepara a seguinte. Um ritual, a corporização de uma necessidade. Mas como conduzir esse processo? Que mecanismo precisa ser acionado para que o fenômeno teatral se instaure com alguma segurança? Via de regra, os atores não possuem esse mecanismo que lhes assegure um bom resultado. O teatro é um jogo, uma experiência lúdica vivida entre o intérprete e seu público. Uma comunhão, portanto.
O primeiro passo no trabalho do ator é sempre a concentração. Esse processo é dinâmico e não pode ser encarado como um olhar do intérprete para si mesmo. É uma arregimentação não só da experiência, mas da energia a ser despendida. A concentração no teatro, embora solitária e aparentemente silenciosa, deve ser trabalhada para fora, direcionada para a cena. Esse processo é também uma reunião com vista à expansão e à exteriorização. Concentrar-se é colocar-se em relação a algo, não de si para consigo mesmo, mas de si para o outro, e começa quando nos preparamos para o jogo.
Para o ator, a concentração não é abstrata. Antes, é a colocação de seu objetivo em um foco específico. O ator tem sempre de recriar seu processo, refazer seus passos. O que possibilita isso é o processo de memória, que pode ser acionado pela vivência ou simplesmente através de um recorte de sua experiência pessoal.
A memória trabalha com a ilusão da realidade e, embora não seja realidade, conecta-se sempre com o presente, nunca com o passado. Assim, a memória está no plano do possível, que é o trânsito do teatro.
A concentração leva o ator ao seu objeto mais precioso, a emoção, que é desencadeada pela memória. Um jogo constantemente construído, desconstruído e imediatamente reconstruído a cada instante.
O modus operandi do ator é um ato de memória, e por isso não há criação artística sem ela. É a memória que suporta a criação e o fator que aglutina o trabalho do ator; não como conteúdo de lembranças, mas como ato criativo. É através dela que o ator reorganiza os elementos que ele desenvolveu no seu processo criativo, operacionalizando seu ofício.
Das capacidades humanas, uma das mais importantes para o processo do ator é a da memória, que é a reconstituição do imaginário em toda a sua complexidade. No trabalho da memória, o tempo e o espaço não têm uma sequência lógica, não obedecem a uma cronologia. E, quando o ator resgata sua memória, suas reações emocionais acontecem em tempo real.
É importante que a imaginação seja nutrida e exercitada. Por isso a vivência da memória é tão necessária. Quando bem trabalhado, o processo imaginativo desencadeia no ator atmosferas, emoções, e traz ao seu trabalho os elementos que mantêm viva sua atuação. O importante é a fé, a crença no que se construiu em seu imaginário.
A imagem faz conexão entre processos mentais e físicos, e não se apresenta apenas no plano visual. Ela sempre se manifesta através de uma experiência psicofísica, que pode resgatar tanto o passado quanto o futuro.
A memória é também imaginativa, por isso trabalha com possibilidades. Seu conteúdo é o suporte do trabalho do ator e deve ser acreditado como algo vivido e experimentado. Para esse ator, a memória torna visível o invisível, quando seu uso é feito através de seu processo, não de seu conteúdo. É assim que esse intérprete organiza sua experiência recuperando sua trajetória e seu processo de trabalho, e se torna pleno.
É esse mecanismo que deve ser acionado a cada récita, fazendo com que o ator construa cada passo do seu raciocínio que aparece em forma de pensamento e de intuição. E é esse pensamento seu suporte, a maneira que ele encontra para conduzir sua intuição e seu raciocínio, que se fazem sempre presentes através da atuação.
Toda vida psíquica tem como suporte o pensamento, seja no nível da racionalidade pura, seja no nível imaginativo, intuitivo. Assim, reconhecemos a intuição sempre através do pensamento, que é como ela se dá. E, nesse caso, o racional supervisiona, organiza, fazendo com que a imagem emerja, através da intuição.
Não existe outro caminho. Nem mais simples, nem mais curto. Por isso, o teatro é uma experiência sempre realizada num plano sensitivo, sensorial. É etéreo e desafia sempre os limites entre o sagrado e o profano porque transita entre planos do racional e do ilógico com a mesma velocidade que permeia a dimensão da genialidade e da loucura. É lúdico também porque há a identificação das regras e a clareza dos limites a que se permitem os intérpretes e os espectadores.