OS DIAS POR AQUI | O silêncio e o front

Tenho trabalhado com o mínimo. As pequenas coisas. O modo como alguém respira antes de responder, o intervalo entre uma palavra e outra, o jeito de apoiar os pés no chão. Tudo isso têm me parecido monumentos. Não sei quando comecei a ver poesia nisso, mas suspeito que foi no instante em que aprendi a não preencher todos os vazios. O silêncio, afinal, tem sua própria melodia.

Tenho olhado mais. Nos olhos, nas pausas, nos gestos. E o mundo, que tantas vezes me pareceu um campo de batalha, agora se revela um espaço de afetos. Nunca fui tão abraçado. As pessoas têm me pegado no colo, literalmente, como se o tempo tivesse decidido me devolver o cuidado que por tantos anos ofereci. E eu, meio cansado, meio encantado, retribuo com o que posso. Uma escuta, um gesto, um agradecimento.

Não é exatamente um tempo de força. Há muito trabalho, muitos olhos sobre meus passos, e eu sigo tentando mover as peças com precisão. A vida, nesse tabuleiro, exige cálculo, mas também fé. Já fui dos que corriam na frente, dos que gritavam, dos que enfrentavam. Hoje, sou mais dos que respiram. Não por covardia, longe disso, mas por ter aprendido que às vezes o silêncio constrói mais que o ruído.

Aos sessenta, vejo surgir um novo personagem. O Ivam Paz e Amor. Que ironia! Depois de tanto embate, descubro que a serenidade é também uma forma de revolução. Que o gesto calmo é uma resistência. Que propor, em vez de reagir, pode ser um ato político.

Penso na Praça Roosevelt. Lembro de quando tudo era ruína e sonho. E nós, teimosos, levantamos o que parecia impossível. O teatro moveu as placas tectônicas da cidade, abriu brechas por onde entrou a vida. O Baixo Augusta nasceu ali, do corpo coletivo, da respiração conjunta. Nada disso foi obra de um só, mas é bonito se ver como personagem do núcleo central dessa transformação.

Hoje, quando me sento diante do tempo e escuto sua respiração, entendo que não vim ao mundo a passeio. Vim pra construir. E ando construindo. Com outros, com o amor, com a utopia de que o amanhã pode ser menos áspero.

Talvez o segredo esteja justamente nisso. Aprender a fazer do silêncio um front. Porque, no fundo, ainda sonho. E continuo acreditando que mudar o mundo é possível. Mesmo que seja apenas transformando o modo como a gente olha para ele.

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
Post criado 1966

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