OPINIÃO | Os sapatos que deixamos pelo caminho

Teatro bom é quando ele não se esgota na cena. Quando permanece em nós como uma lembrança tátil, uma presença que caminha conosco. “Os Sapatos Que Deixei Pelo Caminho”, do Teatro do Kaos, é um desses encontros raros. Desses que não terminam quando as luzes se apagam, mas continuam reverberando no corpo da gente.

Dirigido por Marcos Felipe a partir de um argumento de Lourimar Vieira e escrito por Cícero Gilmar Lopes, o espetáculo é, antes de tudo, uma travessia. Poim, o migrante nordestino que chega a São Paulo com o coração cheio de sonhos e os pés cansados da estrada, é também o retrato de tantos de nós que buscamos um lugar no mundo. A peça se constrói como uma autoficção sensível e honesta, que não se contenta em narrar. Ela faz sentir. Lourimar não interpreta Poim, ele o evoca, o reinventa a partir de uma memória coletiva, de um país inteiro que migra para sobreviver e sonhar.

A encenação de Marcos Felipe é um exercício de sensorialidade e coragem estética. O cenário, de Fabiano Di Melo e do próprio grupo, é uma grande instalação que combina ferro, tecido, objetos e calçados de diferentes tempos, funciona como extensão do corpo do protagonista. Cada sapato é uma biografia interrompida, um passo suspenso, um rastro deixado na terra. A luz, poética, parece respirar junto com Poim. Ilumina seus delírios, recorta seus fantasmas e desenha a solidão urbana que o engole.

A trilha sonora, de Marcos Felipe e Sandra Modesto, é um personagem à parte no espetáculo. Atravessa tempos, geografias e afetos. Costura o sertão à metrópole, o passado ao agora, como se quisesse reconciliar o pulso do corpo com o da cidade. Há nela o eco de um chamado distante e, ao mesmo tempo, o rumor metálico das máquinas, das buzinas, da vida que não cessa. A trilha tem dois momentos de genialidade: “Wayfaring Stranger”, na versão da The Broken Circle & Bluegrass Band, que evoca a travessia, a dor e a fé do migrante; e, sobretudo, “Ball and Chain”, com Big Brother & The Holding Company & Janis Joplin, que irrompe como catarse. Uma explosão de alma, libertação e fúria poética. Já a dança, memória ancestral, é o gesto que vem completar o som. Aquilo que o corpo sabe antes da palavra e que só o teatro, em sua grandeza, consegue traduzir.

O trabalho de bonecos e objetos amplia a dimensão simbólica da cena. Eles não são acessórios, mas presenças. O menino de pano que observa, a mala que respira, o sapato que anda sozinho. Tudo parece dotado de alma.

Há ainda a colaboração preciosa da Cia. Mungunzá, perceptível no rigor da pesquisa, na poética da marginalidade e na escuta profunda das vozes subalternizadas. O diálogo entre os dois grupos é um encontro de potências. A Baixada Santista e o centro de São Paulo unindo forças para pensar o Brasil que insiste em caminhar, apesar de tudo.

Fundado em 1997, o Teatro do Kaos é uma das mais belas provas de resistência e amor à arte que o país já viu. Nascido em Cubatão, cidade marcada por contradições entre o trabalho industrial e o sonho artístico, o grupo construiu, com suor e coragem, um território próprio. Hoje, evoé, mantém sede e escola de atores, formando novas gerações e garantindo uma produção contínua e pulsante. À frente, Lourimar Vieira, o Poim, figura essencial do teatro brasileiro contemporâneo, um artista que encarna o ofício com verdade, generosidade e entrega raras. E é preciso dizer: o elenco que o acompanha é de uma entrega e intensidade admiráveis. Camila Sandes, Fabiano Di Melo, Levi Tavares e Luiz Guilherme, são intérpretes que não apenas representam, mas vivem o teatro. E fazem dele um espaço de beleza, consciência e esperança.

Ao final, “Os Sapatos Que Deixei Pelo Caminho” é menos sobre o que se perde e mais sobre o que permanece. É um convite a olhar para o chão e reconhecer as pegadas que nos trouxeram até aqui. Porque o teatro, afinal, é só isso. Um ato de memória em movimento, uma oferenda ao humano que resiste em seguir andando. Mesmo descalço, mesmo ferido, mesmo cansado.

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
Post criado 1966

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