Nebulosa de Baco, novo espetáculo escrito e dirigido por Marcos Damaceno, é um campo de forças impressionante. Um espaço onde desejo, ausência, memória e linguagem friccionam o presente com uma intensidade que emociona e faz pensar. O que se vê no palco, mais do que uma história, é uma espécie de ritual entre gerações.
Em cena, uma jovem atriz (Helena de Jorge Portela) enfrenta um impasse essencial: ela não consegue chorar. Convocada a interpretar uma filha em conflito com o pai, mergulha num processo de ensaio conduzido por uma atriz mais experiente (Rosana Stavis) — e é nesse encontro, feito de tensões, afetos e espelhamentos, que o espetáculo revela sua verdadeira matéria.
A dramaturgia propõe um jogo sutil entre o cômico e o dramático, entre a peça encenada e a peça ensaiada, embaralhando, com inteligência pirandelliana, os limites entre ficção e realidade. O palco torna-se então um espelho embaçado, onde verdade e mentira, memória e invenção, presença e representação se confundem — como acontece, afinal, nas zonas mais profundas da vida e da arte.
Unidas pela peça que ensaiam — e separadas por suas lacunas de vida —, elas se confrontam, se reconhecem e, aos poucos, se escutam, articulando memória e presente como se fossem a mesma matéria cênica: líquida, instável, pulsante.
O embate se dá justamente nesse encontro de gerações entre Rosana, uma das maiores atrizes brasileiras em atividade, e Helena, jovem intérprete em pleno desabrochar. Mas não se trata de um jogo hierárquico. O que a encenação revela é uma relação de trânsito: uma condução delicada, quase invisível, como quando um corpo mais experiente oferece sua cadência a outro que ainda busca seu próprio compasso.
Rosana não “divide” a cena. Ela a oferece à sua colega de palco. E, ao fazer isso, amplia sua potência. Conduz sem domesticar, ilumina sem ofuscar. Como se dissesse, com o corpo, o que a psicanálise tantas vezes tentou nomear: o desejo se transmite, mas nunca se impõe.
E é nesse ponto que a peça toca o que há de mais profundo na tradição teatral: a herança simbólica. No teatro — como na clínica psicanalítica — não há saber a ser transferido como conteúdo fechado. O que se transmite é o modo de desejar, a abertura ao risco, a confiança no que ainda não tem forma. O palco de Nebulosa de Baco se torna, assim, uma espécie de dispositivo analítico. Ali se projeta, se recua, se transfere e, sobretudo, se escuta.
A jovem Helena responde com vigor e doçura. Sua presença é pulsante, sem alarde. Ela não busca “imitar” sua parceira de cena. Ao contrário, oferece outro corpo, outra voz, outra vibração — e é justamente nesse contraste que o encontro se realiza. Há algo de Winnicott nessa relação. A atriz mais experiente oferece uma espécie de “ambiente suficientemente bom” para que a outra se arrisque, brinque, invente. Sem medo do erro.
Damaceno, que há anos se afirma como um dos mais importantes diretores do país, opera com precisão essa dramaturgia das presenças. Seu texto não se oferece como resposta, mas como enigma. A encenação não procura o aplauso imediato, mas a reverberação silenciosa. É um teatro do intervalo, das abstrações, do que escapa. Do inconsciente.
Baco, no título, talvez seja menos o deus da embriaguez e mais o signo daquilo que ultrapassa os limites do Eu. O vinho, a entrega, o excesso — tudo aponta para um território onde a razão cede lugar à pulsão. Mas há também a “nebulosa”, termo vindo da astronomia que nomeia as nuvens cósmicas de poeira e gás onde nascem (e morrem?) as estrelas. O título, então, sugere um paradoxo belíssimo: um lugar de delírio e criação, de perda e nascimento, de confusão e reinvenção. Damaceno, astuto, não cai na caricatura. Seu Baco é também melancolia, vazio, deslocamento. O delírio que encobre uma falta mais funda. O riso que escapa de quem sabe — no fundo — que não há plenitude possível.
Rosana Stavis, minha colega dos tempos do Curso Superior de Teatro da PUC/PR, com quem dei meus primeiros passos de cena nos idos dos anos 1980, está magistral. Alcança aqui um estado de maturidade cênica raro. Atua com a inteireza de quem já não precisa provar nada a ninguém. Seu corpo sabe. Sua voz sabe. E, mais bonito ainda, ela sabe escutar.
E é justamente nesse gesto de escuta que floresce a presença deHelena de Jorge Portela, que não se intimida diante do monumental — antes, o atravessa com firmeza e delicadeza. A jovem atriz traz para o palco uma vibração singular, feita de urgência e assombro, como quem ainda descobre o teatro a cada fala — e, por isso mesmo, o renova. Ao lado de Stavis, não desaparece: responde. E essa resposta é luminosa. Talvez este seja o gesto mais político de um artista hoje: criar espaço para o outro existir. É isso que Stavis faz por Helena — e que Damaceno, como diretor, proporciona ao público. Um espaço onde o outro não é ameaça, mas possibilidade.
A peça é, também, uma delicada declaração de amor ao teatro e às cumplicidades. Marcos Damaceno e Rosana Stavis são parceiros de cena e de vida há muitos anos, e essa intimidade transborda para o palco com a naturalidade de quem conhece cada silêncio do outro. Não há excesso de afeto nem sublinhado sentimental. O que se vê é um companheirismo raro, refinado pela convivência, pela admiração mútua e por uma confiança que se revela na cena com gestos mínimos, mas decisivos.
Ao final de Nebulosa de Baco, não saímos “comovidos” no sentido vulgar do termo. Saímos transformados. Porque esse teatro nos ensina algo que tanto a arte quanto a análise sempre souberam: o que se dá, permanece. E o que se escuta, atravessa.