Olhos nos Olhos é mais do que um espetáculo. É um rito de passagem. A celebração de 80 anos de vida e 60 de carreira de uma atriz que atravessou a história do teatro brasileiro com elegância, coragem e lucidez. Ana Lucia Torre sobe ao palco do Teatro Santos Augusta não apenas para representar, mas para rememorar. E, nesse gesto, transforma sua biografia em matéria poética.
Sérgio Módena conduz a montagem com delicadeza e escuta. É um diretor que sabe quando intervir e quando se retirar, permitindo que o tempo da atriz – esse tempo denso, cheio de camadas – respire. O espetáculo nasce do encontro entre a precisão técnica e a emoção sem artifícios. Tudo ali é medida. Tudo pulsa, ainda que em silêncio.
O cenário de André Cortez é um achado. E sofisticado. Uma arquitetura de memória, onde o espaço não ilustra, mas respira junto com a atriz. É um ambiente limpo, simbólico, que acolhe o corpo de Ana Lucia como se fosse extensão dele. A luz, de Gabriele Souza, é quase uma personagem. Desenha atmosferas, revela delicadezas, cria o invisível. Já os figurinos de Fábio Namatame traduzem em tecidos o percurso de uma mulher que viveu muitas vidas sobre o palco. Ora o rastro da diva, ora a nudez da intérprete que se despe de tudo. E sempre com uma elegância rara!
Não é preciso ser expert na obra de Chico Buarque para se deixar atravessar por Olhos nos Olhos. As canções, mesmo aquelas que não são exatamente dele, como “Façamos (Vamos Amar)”, original de Cole Porter, na versão de Carlos Rennó; ou “Valsinha”, letra de Vinicius de Moraes, compõem um mosaico afetivo, um repertório que nos devolve ao Brasil que fomos e, talvez, ainda sejamos. O que importa, no fundo, é o gesto de Ana Lucia Torre. O gesto de cantar sem voz, dançar sem música e lembrar sem dor.
O mais impressionante é a vitalidade dessa atriz que, aos 80 anos, domina o palco por quase noventa minutos de pura entrega. Sua respiração é o compasso da cena. Suas pausas são cheias de sentido. A cada palavra, ela parece nos dizer que envelhecer também é uma forma de resistência. E que o teatro, quando verdadeiro, é sempre um modo de permanecer humano diante da passagem do tempo.
Há um momento em que ela fala de sua prisão durante a ditadura militar. Nenhum lamento. Nenhum tom panfletário. Apenas a serenidade de quem sobreviveu e pode, enfim, narrar. E é justamente aí que o espetáculo atinge seu ponto mais alto. Quando a vida e a arte deixam de se distinguir, e Ana Lucia Torre, inteira, se torna testemunha.
Em cena, a atriz é acompanhada pelo pianista Diógenes Junior, cuja presença discreta e sensível dá à montagem um pulso orgânico. A direção musical de Pedro Lobo, excelente e inventiva, amarra com precisão cada atmosfera do espetáculo, transformando as canções em paisagens sonoras que respiram junto com a atriz. Suas escolhas, sempre criativas, sustentam a delicadeza e a força da cena. As intervenções de Diógenes funcionam como extensões desse desenho musical: respirações da própria narrativa, às vezes sublinhando a emoção, outras vezes conduzindo Ana Lucia a territórios de pura contemplação. O piano não é mero acompanhamento. É diálogo, memória sonora e extensão do corpo da intérprete.
A produção é assinada pela Morente Forte, parceria sólida entre Célia Forte e Selma Morente. Há décadas, a dupla se dedica à realização de espetáculos fundamentais da cena brasileira, sempre com rigor, afeto e inteligência. Mais recentemente, ampliaram esse compromisso com a criação do Canal Teatro MF, espaço dedicado à divulgação e reflexão sobre o teatro produzido em São Paulo, com matérias e críticas assinadas por profissionais de destaque da área.
Olhos nos Olhos é uma celebração. Não apenas de uma carreira exemplar, mas de uma ética artística que entende o palco como espaço de verdade. Ana Lucia não interpreta Chico Buarque. Ela o reinventa em si. E, ao fazer isso, nos devolve algo raro. A certeza de que a arte ainda pode ser um ato de coragem e ternura.