OPINIÃO | A Recaída: o teatro como espelho da sobrevivência

Teatro bom é aquele que não termina no palco. Vai pra casa com a gente e fica ali, em silêncio, trabalhando por dentro. Nas memórias, nas perguntas, nas horas em que a gente ainda pensa no que viu. A Recaída, solo de Victória Camargo que está em cartaz no simpático Atelier Cênico, é uma dessas experiências em que a cena e o real se confundem. Onde o ato de voltar ao teatro é, ele próprio, um gesto de resistência e de luto.

Victória interpreta uma atriz que retorna aos palcos após quarenta anos, depois de uma carreira interrompida por uma tragédia, e o faz carregando uma dor inominável: a perda do filho único durante a pandemia. Mas o espetáculo vai além do drama pessoal. É uma meditação sobre a memória, o corpo e o próprio ofício de representar. Em cena, ela é ao mesmo tempo mãe e atriz, mulher e personagem, presença e ausência. Sua atuação é de uma precisão que desarma. A atriz faz do palco um altar íntimo, onde o teatro reencontra sua função mais primitiva: a de curar.

A dramaturgia, assinada por Filipe Doutel e pela própria Victória, constrói uma tessitura delicada entre o pessoal e o histórico. Há ecos de uma geração que atravessou ditaduras, perdas e recomeços. Uma história do país filtrada pela subjetividade de uma mulher artista. O texto é ao mesmo tempo político e íntimo, de uma inteligência que sabe que o silêncio, às vezes, diz mais do que qualquer palavra.

Com tamanha delicadeza no texto, a direção de Marcelo Braga é minuciosamente desenhada, como se cada gesto precisasse encontrar o seu lugar exato no espaço. Há beleza nesse rigor, mas também a sensação de que uma pequena folga, um respiro, poderia abrir frestas para que o público também participasse da elaboração. Porque o excesso de precisão, às vezes, impede o acaso. E, muitas vezes, o acaso também pode ser matéria viva do teatro.

Na cenografia e no figurino de Stephanie Fretin, há um jogo de transparências e memórias. Tecidos que parecem guardar histórias, objetos que sugerem vidas passadas. O ambiente cênico é simples, mas repleto de significados, como se cada elemento fosse uma lembrança em suspenso. A trilha sonora de Daniel Ganjaman costura o espetáculo com sensibilidade. O desenho de luz de Rodrigo Palmieri completa esse ritual de recomeço. Há algo de sagrado na forma como as sombras se movem, revelando o rosto de uma mulher que volta a existir.

É curioso, e talvez essa seja uma das maiores virtudes de A Recaída, falar de uma dor que o teatro, em geral, silenciou. Passamos por uma pandemia que levou mais de 700 mil vidas no Brasil e quase sete milhões no mundo, e, ainda assim, a cena teatral pouco se debruçou sobre esse trauma coletivo. Como se estivéssemos todos, artistas e público, temendo revisitar o abismo. A Recaída ousa fazer isso. Não como documento, mas como experiência sensorial e humana. A pandemia, aqui, não é tema. É ferida aberta, memória ainda pulsante. Ao colocar essa dor “de ontem” no presente da cena, o espetáculo devolve à arte o poder de elaborar o luto que o país, em grande parte, se negou a viver.

A Recaída é uma obra sobre o retorno, ao palco, à vida, à própria humanidade. Um trabalho de maturidade, onde a arte se faz gesto de amor e coragem. A peça nos faz lembrar que o teatro não é apenas o lugar onde fingimos viver, mas onde aprendemos, juntos, a não morrer.

Ao final, quando as luzes se apagam, permanece o som da respiração. A da atriz e a nossa. É como se o teatro, por um instante, se tornasse abrigo para o indizível. E fosse possível, enfim, transformar a dor em presença.

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
Post criado 1966

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Posts Relacionados

Comece a digitar sua pesquisa acima e pressione Enter para pesquisar. Pressione ESC para cancelar.

De volta ao topo