A VIDA DA GENTE | O tempo da tentativa

Apesar de tantos anos de convivência, é agora, pela primeira vez, que trabalhamos juntos de modo direto. Ela é jovem, bonita, dessas pessoas que se pode contar para tudo. Traz no rosto um sorriso disponível, no gesto uma prontidão rara. Não me surpreende. Sua avaliação sempre foi positiva, todos gostam dela. Mas, como disse, é novidade dividir com ela a intimidade de um trabalho.

Uns anos atrás, o destino lhe armou uma emboscada cruel. Descobriu uma doença dessas que vêm como sentença. Viveu tempos de dor e de solidão. A pandemia acentuou ainda mais esse deserto. Sozinha em São Paulo, a cidade imensa lhe pesava no peito. Tinha um companheiro, acreditava viver uma relação séria, mas foi justamente nesse período que descobriu a traição. E não uma traição qualquer. A dor da mentira se somava à dor da carne, ao silêncio dos corredores de hospitais, às sessões de quimioterapia que drenavam não apenas o corpo, mas também a esperança.

Ainda assim, resistiu. A vida, sempre ela, insistiu em se reinventar. Ela atravessou o deserto, reconstruiu-se pouco a pouco e, hoje, está em processo de cura. Ou melhor, já está curada, prefiro acreditar nisso. Porque curar-se não é só vencer exames médicos. É também recobrar o direito de sorrir de verdade.

Enquanto a observo de perto, percebo que sua coragem me obriga a voltar à minha própria história. Também eu já estive nesse campo de batalha. Duas vezes o corpo me cobrou pelas minhas imperfeições, duas vezes enfrentei rádio e quimioterapia. E, confesso, foi doloroso demais. O que se aprende nesses momentos não é a vitória, mas o verbo da tentativa. Tentamos entender o que o corpo quer nos dizer, tentamos decifrar sinais, tentamos dar sentido ao absurdo.

E talvez seja isso que nos mantém vivos. A tentativa. Não a vitória, não a derrota. O movimento. Porque tentar é continuar respirando. É abrir espaço para que a vida, mesmo ferida, encontre brechas para florescer.

Agora, trabalhando ao lado dela, sinto que nossas histórias se tocam. Duas biografias atravessadas pela dor, duas existências que descobriram que não há garantias, mas há caminhos. E que, no fundo, viver é sempre isso. Tentar, apesar de tudo. Reinventar, é isso!

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
Post criado 1934

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