Então eu reli, na última semana, o texto dramático “Retábulo das Maravilhas”, de Miguel de Cervantes. A obra, escrita no final do século XVI, conta a história de um grupo de teatro mambembe que, numa pequenina cidade do interior da Espanha medieval, tenta enganar o governador, o alcaide e alguns moradores de uma vila com as mais absurdas ilusões de ótica.
“Retábulo das Maravilhas” é uma peça curta e, ainda que num primeiro momento pareça ingênua, nos pega exatamente na armadilha do imaginário.
Cervantes trabalha com o binômio realidade/fantasia e brinca, o tempo todo, com teorias do jogo teatral. Interessante, no entanto, é encontrar na obra o “se mágico” de Stanislawski, que se ocupa das conjeturas imaginárias para desembocar no processo criativo.
O autor ainda realiza, nesta obra, uma crítica feroz à igreja e à sociedade. Em plena inquisição, as personagens-atores-mambembes avisam que irão apresentar um grande espetáculo em seu pequeno retábulo e quem não conseguir enxergá-lo é bastardo.
Em um universo picaresco – muito comum no teatro espanhol do período –, Cervantes se utiliza, também, do elemento grotesco para chegar a um delicioso jogo do imaginário. E a nós, público – ou, no meu caso, mero leitor –, cabe enxergar exatamente aquilo que não se vê, que não se encontra num primeiro plano.
No livro VII de “A República”, escrito há quase 2.500 anos, Platão narra o mito da caverna, uma das metáforas mais poderosas da Teoria do Conhecimento. Segundo o filósofo grego, não conhecemos a realidade, apenas as sombras do que imaginamos ser o real – sua imitação, a mimesis, portanto. Essa revelação da condição humana, mostra que a realidade acaba por pertencer apenas ao mundo das ideias.
Que deliciosa associação! Então, na verdade, o plano do imaginário, da mimesis, seria, de fato, o lado real daquilo que pensávamos, até agora, pertencer ao terreno da representação? Porque, em seu texto, a “realidade” de Cervantes não está acessível aos descrentes e pertence única e exclusivamente ao campo do imaginário.
Deste modo, no universo cervantesco, a imagem faz conexão entre processos mentais, físicos, imagéticos e não se representará apenas no plano visual. É, portanto, a experiência psicofísica que pode resgatar tanto o passado quanto o futuro.
Não podemos esquecer que a memória também pode ser imaginativa e, por isso mesmo, pode trabalhar nas camadas das possibilidades. Seu conteúdo é seu suporte e deve ser credenciado como algo vivido.
Sim, a memória torna visível o invisível quando seu uso é feito através de seu processo, nunca de seu conteúdo, e, assim, temos organizadas as nossas experiências, recuperando, desta forma, nossas trajetórias.
Hegel irá dizer, em algum momento que a reflexão sobre a arte acaba por ser mais interessante que a própria arte. Se tomarmos Platão como referência, podemos pensar que o atraente desta relação seria, então, a operação que desencadeia a mimesis.
Há, ainda, uma outra teoria de Aristóteles que irá contrapor Platão falando sobre a imitação das ações. Para ele, a mimesis é sempre ativa e também criativa, pois resgata o mundo nos mesmos moldes pelos quais se organiza.
Ainda para Aristóteles, o teatro trabalha com o paralelo da imitação das ações cotidianas. Nesta ordem, o dramaturgo imita pessoas quando cria suas personagens; e o ator, por sua vez, duplica estas personagens que são, em si, as pessoas realizadoras destas ações.
Em nossos tempos, o mito da caverna descrito por Platão pode apresentar, simplesmente, a dialética como movimento ascendente da libertação de nosso olhar. Um olhar que nos libera da cegueira para vermos a luz das ideias, real e quase absoluta.
Mas estamos falando de teatro, neste caso o teatro das maravilhas, que tão bem nos apresentou Cervantes. Nele, suas personagens, ao imitar as ações cotidianas, nada mais são do que reflexos de suas próprias apreensões. E parece que nada mudou desde que aqueles artistas mambembes se atiraram aos seus próprios paradoxos. A peça, embora delire vocabularmente, é grandiosa no satírico. E ainda que estejamos no contexto da inquisição, não podemos esquecer que, neste meio, é fatal ser bastardo.