Eu nunca tive coragem de encarar o que vou revelar agora. Nunca. Talvez seja um daqueles segredos que carregamos como pedra no bolso, pesando o corpo inteiro. Acho até que jamais ousei comentá-lo com alguém. Sempre morri de vergonha. Porque não foi fácil. Não tem sido fácil. E sei: não será jamais fácil.
A vida, às vezes, nos atravessa como um carro desgovernado – e não falo em metáfora. Eu tinha 20 anos quando um acidente partiu em estilhaços não apenas o para-brisa do carro de um amigo, mas também o meu rosto. Levei centenas de pontos na cara. Quebrei os dentes. Os da frente, quase todos.
Nos anos 1980, aquilo era uma tragédia para um jovem ator que despertava para o mundo. Eu não tinha dinheiro para corrigir o estrago. Os dentistas eram caros, os recursos escassos, implantes dentários sequer existiam. Restaram cicatrizes, que o tempo tratou de organizar sobre a pele, mas que nunca deixaram de me assombrar como espectros. Sempre a sussurrar: “Você não serve para isso. Você é incapaz para a sua profissão.”
E assim foi. Durante muitos anos, caminhei pelo mundo com a boca mutilada. Foram anos sem sorrir, porque o sorriso feria mais do que a cicatriz. Anos sorrindo de lado, hesitante, como quem pede desculpas à vida por existir.
Me lembro bem da época em que a Globo me chamava para testes. Eu, ator de corpo inteiro, sabia que jamais caberia em um close e, por isso, recusava todos. Não por orgulho, mas por vergonha. Permanecia em silêncio, como se cada convite fosse uma promessa impossível. Me transformei avesso a qualquer chamado, como se o destino insistisse: “Venha”, e eu respondesse: “Não posso, me faltam dentes.”
Só muito mais tarde, já na Praça Roosevelt, consegui enfim resolver o problema dentário. Quer dizer, tento até hoje. E entre teatros, bares e utopias, vou recuperando não apenas dentes, mas também o riso, a dignidade, a presença.
Recentemente, numa sessão de análise, falei sobre isso. Perguntei a mim mesmo o que teria sido com a minha vida se tivesse nascido em uma família capaz de me sustentar naquele momento. Se tivesse sido herdeiro, com acesso a cirurgias, tratamentos, reparos. Talvez minha trajetória tivesse seguido outro rumo, talvez a televisão tivesse me devorado inteira, talvez tudo tivesse sido diferente.
Mas não foi. Minha autoestima ficou por anos prisioneira da boca quebrada e do rosto deformado. Foi dessa dor, no entanto, que inventei outras formas de estar, de criar, de permanecer.
E talvez seja disso que a arte se nutra: não da perfeição dos dentes alinhados, mas da coragem de transformar a falta em presença. O sorriso que me faltou, paradoxalmente, foi o que me deu a voz.