UM SONHO | O que resiste, mesmo quando tudo se afoga

Há sonhos que não vêm para ser decifrados — vêm para ser habitados. Como se o inconsciente, esse arquiteto sem licença nem pudor, montasse cidades líquidas onde a lógica se dissolve feito tinta na água.

Foi assim, navegando por um país sem nome — talvez asiático, talvez apenas inventado — que reencontrei Bia. E Guadalupe, minha amada mini-golden, embarcada comigo como se os cães, diferentemente dos humanos, jamais se esquecessem de onde pertencem.

O cenário: uma casa grande, de portas que não fecham e rostos que não se explicam. Ninguém ali tinha nome, exceto ela — Bia — e Guadalupe, é claro, que, ultimamente, tem atravessado as cenas da minha vida com aquele olhar que só os animais sabem sustentar: um olhar que apenas testemunha.

Saímos, então, para um passeio, navegando por canais tortuosos. Uma floresta, crianças, animais, macacos — tudo parecia fazer parte daquele ecossistema improvável. As águas ora nos conduziam, ora exigiam que seguíssemos a pé, meio nadando, meio insistindo. Até que surge um píer. E, sob ele, os vestígios dos que passaram antes: bolsas esquecidas, sapatos, pequenas ruínas de uma vida inteira derramada no fundo.

Foi quando avistei aquela pequena maleta. Louis Vuitton, parecia. Afundei as mãos na água, retirei-a. Estranhamente feliz, como se a bolsa não fosse apenas uma bolsa, mas um relicário de algo que eu nem sabia ter perdido.

E então Bia. Rindo. O mesmo riso de quem, décadas antes, me ensinou que a beleza não tem obrigação nenhuma de ser prática — e que a elegância, essa sim, é uma forma de resistência.

Mas o riso dela não escondia tudo. Porque os sonhos, às vezes, também são armadilhas. E acordar foi, mais uma vez, ser jogado no desconforto de quem sabe que há dívidas que não vencem no calendário. Nunca fui visitá-la naquele quarto de paredes gastas onde ela, já quase sem memória, ainda lembrava de mim. E queria me ver. É assim que a culpa se instala: não com gritos, mas com silêncios que ninguém mais escuta, exceto quem os carrega.

A vida da Bia sempre foi um paradoxo de opulência e ruína. Filha da elite, criada entre quadros do Dalí e tardes no Sena, terminou os dias rodeada não mais de arte, mas de fantasmas. O Dalí — aquele mesmo — virou fumaça, tragado pelo vício da própria mãe. A irmã, que um dia frequentou as bibliotecas do Canadá, virou ponto fixo num semáforo da zona sul, pedindo esmolas a quem passasse apressado demais para lembrar que a vida é, no fundo, este fio tão frágil quanto invisível.

O sonho me deixou uma pergunta: o que resta de nós quando tudo se perde? Talvez essa pequena bolsa resgatada — esse objeto inútil, mas autêntico — seja uma metáfora perfeita. Porque há coisas que, mesmo no fundo do lodo, insistem em ser verdadeiras.

Guadalupe, no sonho, seguiu caminhando. E, acordado, gosto de pensar que ela segue me guiando. Porque é isso que fazem os que nos amam, estejam vivos, mortos ou em qualquer lugar onde a memória e o afeto ainda consigam respirar.

E Bia… Bem, Bia, se você puder me ouvir desse lugar onde os risos antigos não se apagam, saiba que hoje — mesmo que tarde — eu te visitei.

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
Post criado 1839

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