ENCONTRO INTERNACIONAL | Acessibilidade para além da inclusão

No artigo “Acessibilidade para Além da Inclusão”, resultado da minha contribuição no I Encontro Rede Internacional de Teatro Comunidade e Artes Participativas em Funchal, na Madeira, apresento uma análise das dimensões pedagógicas e sociais que orientam a proposta de substituir o termo inclusão social por acessibilidade. Esse novo enfoque surge das práticas e experiências da Associação dos Artistas Amigos da Praça (Adaap), que gerencia a SP Escola de Teatro em São Paulo. A Adaap tem se dedicado a construir um espaço que transcende a ideia de inclusão, promovendo o acesso pleno às artes do palco, por meio de uma abordagem que reconhece e respeita a pluralidade de modos de ser e existir. A partir dessa perspectiva, o conceito de acessibilidade se expande para abarcar não apenas a presença, mas também a efetiva participação e protagonismo de todos, independentemente das barreiras sociais ou individuais. Esse artigo, então, propõe uma reflexão sobre as transformações necessárias para que o campo das artes e a sociedade abracem práticas genuinamente inclusivas, enraizadas no princípio da acessibilidade.

 

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Acessibilidade para Além da Inclusão, por Ivam Cabral

 

Resumo

O artigo apresenta aspectos pedagógicos e sociais para se pensar na substituição do conceito e da nomenclatura inclusão social por acessibilidade, a partir das experiências empreendidas pela Associação dos Artistas Amigos da Praça (Adaap), organização social responsável pela gestão da SP Escola de Teatro – Centro de Formação das Artes do Palco, em São Paulo, Brasil.

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Abstract

The article presents the pedagogical and social aspects to think about replacing the concept and nomenclature of social inclusion with accessibility, based on the experiences undertaken by the Associação dos Artistas Amigos da Praça (Adaap), a social organization responsible for managing the SP Escola de Teatro – Centro de Formação das Artes do Palco, in São Paulo, Brazil.

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Um iniciativa fundamental que a Adaap propôs quando criou o sistema da SP Escola de Teatro foi a substituição prática e epistêmica da noção de inclusão social pela de acessibilidade. Seguindo o princípio proposto, evitar-se-ia a objetificação do indivíduo que, por opressão ou exclusão das oportunidades socioeconômicas disponíveis, ao ser passivamente incluído, poderia ser forçado a realizar algo ou fazer parte de algo devido a circunstâncias externas, perdendo, assim, sua autonomia e controle sobre as próprias ações.

A acessibilidade, por sua vez, perfaz um movimento contrário, uma vez que significa que todos podem ter acesso a tudo o que precisam para cumprir seu objetivo, desde que sejam oferecidas oportunidades iguais. Como resultado, o ser humano torna-se um sujeito ativo que acessa territórios ao invés de um objeto passivo que é incluído neles. O cidadão decide onde, como, quando e se quer ir ou fazer parte de determinada conjuntura, oportunidade ou círculo socioeconômico, cultural ou político.

Desde o início, o projeto político pedagógico da Adaap primava por uma constituição estudantil que abarcasse sobretudo estudantes em situação de vulnerabilidade social. Por intermédio de processos seletivos arrojados e democráticos, o corpo discente da SP Escola de Teatro foi sendo majoritariamente formado por jovens de comunidades periféricas da cidade de São Paulo[1].

Por meio de livros e artigos acadêmicos publicados, os pedagogos da Adaap vêm promovido a filosofia de que as pessoas em situação de vulnerabilidade social não precisam ser incluídas por agentes externos em nenhum lugar, mas precisam ter acesso a bons programas educacionais, bibliotecas equipadas, projetos de profissionalização e intercâmbio cultural com outras pessoas e lugares que não discriminam aprioristicamente as chamadas minorias, para que todos possam vir e ir para aonde quiserem e quando quiserem.

Em minha tese de doutorado O importante é [não] estar pronto – Da gênese às dimensões políticas, pedagógicas e artísticas do projeto da SP Escola de Teatro, sistematizei essa mudança de paradigma proposto desde a fundação da Adaap.

Partimos do princípio de que as pessoas não precisam ser incluídas, mas, sim, necessitam de acesso. A inclusão pressupõe que os “excluídos”, aqueles que ficam às margens do sistema, precisam ser integrados, por uma força exterior, dentro de algo. Como corolário, os excluídos transformam-se em objetos passivos, presos por uma relação de transitividade, em que viram peças inertes em um tabuleiro controlado por terceiros: ser incluído em algo ou algum lugar. Acessibilidade, por sua vez, significa que todas as pessoas devem ter acesso para onde elas quiserem: o sujeito acessa algo ou algum lugar. Isso gera autonomia, condição fundamental de nosso projeto, em que todos são detentores de seus próprios desejos. Trata-se, assim, de uma mudança de perspectiva tanto epistêmica quanto linguística. Compreendendo os acessos como vetores disponíveis para todos os sujeitos, igualitariamente, transitarem por qualquer campo cultural, valoriza-se a autonomia, o livre-arbítrio e a liberdade de escolha dos indivíduos, em vez de condicioná-los a recursos limitados por barreiras econômicas, sociais, étnicas ou biofísicas. (CABRAL, 2017, p. 116)

Diversidade, igualdade e acessibilidade estão no cerne da Adaap porque age-se na perspectiva de que a pluralidade e a alteridade são entendidas como fontes de energia e potencial criativo, elementos que quebram paradigmas anacrônicos e provocam transformações socioculturais independentemente da forma de que se lance mão ou se postule trabalhar.

Para isso, o livre-arbítrio é condição imprescindível, tal como no modelo de igualdade democrática proposto pela filósofa Elizabeth S. Anderson:

Como o objetivo fundamental dos cidadãos na construção de um Estado é o de garantir a liberdade de todos, os princípios de distribuição da igualdade democrática não têm a pretensão de dizer às pessoas como usar suas oportunidades nem tentam julgar o quanto essas pessoas são responsáveis por escolhas que levem a resultados desafortunados. (ANDERSON, 2014, p. 166)

Na SP Escola de Teatro, a Adaap aplica o conceito de acessibilidade desde o processo seletivo. Ao dar maio peso às entrevistas e provas práticas do que na avaliação escrita, evita-se que os candidatos que estudaram nas escolas particulares de elite, por exemplo, sejam aprovados “apenas” por terem usualmente maior domínio da norma culta da língua ou maior habilidade na concatenação de ideias por escrito do que aqueles que não tiveram as mesmas oportunidades.

Trata-se, portanto, de um dispositivo pedagógico que prescinde de cotas, porque a acessibilidade já faz parte de um modelo sistêmico integral. Como consequência, o perfil dos estudantes torna-se reflexo da sociedade, com distribuição justa, equilibrada e com especial atenção para os grupos historicamente marginalizados: pretos, indígenas, transexuais, refugiados, moradores da periferia, pessoas com deficiência. O quadro de funcionários, por meio de políticas afirmativas de contratação, busca igual multiplicidade étnica, social e de gênero.

São ações adotadas desde 2010, muito antes de as pautas identitárias ganharem o devido peso dentro das discussões sobre justiça social tanto dentro de políticas públicas quanto no âmbito empresarial. É esse contexto de autonomia e diversidade que a escola tem condições de impulsionar a emancipação do sujeito, ao invés de moldá-lo acriticamente a uma visão de mundo pré-determinada, como aponta Bourdieu.

Ao inculcar – em grande parte pelo sistema escolar – estruturas cognitivas comuns, tacitamente avaliativas (não se pode dizer preto no branco sem dizer tacitamente que branco é melhor que preto), ao produzi-las, ao reproduzi-las, ao fazê-las reconhecer profundamente, ao fazê-las incorporar, o Estado dá uma contribuição essencial à reprodução da ordem simbólica, que colabora de maneira determinante para a ordem social e para sua reprodução. Impor estruturas cognitivas e avaliativas idênticas é fundar um consenso sobre o sentido do mundo. (BOURDIEU, 2014, p. 230)

A Adaap compreende a legenda Centro de Formação das Artes do Palco de forma polissêmica em todo o seu organograma: o Curso Técnico tem a função de profissionalizar artistas de todos os campos cênicos; a Extensão segue a prerrogativa de ampliar a rede de ensino para territórios expandidos, com oficinas abertas à população de todo o Estado; o Programa Oportunidades garante bolsas de estudo aos estudantes e atua como facilitador para estágios e vagas de empregos; os projetos especiais viabilizam a vinda de espetáculos gratuitos; o setor de projetos internacionais propicia intercâmbios mundo afora; e assim por diante.

As decisões sobre quais caminhos serão percorridos concerne ao indivíduo. Como fartamente deslindado nesta resposta de convocatória, o sistema pedagógico adotado da SP Escola de Teatro de São Paulo é baseado em três pilares: a pedagogia da autonomia de Paulo Freire, o conceito de território solidário de Milton Santos e a filosofia sistêmica de Fritjof Capra. Esses três vetores orientam o funcionamento de tudo na escola: os conteúdos programáticos, as aulas diárias, as experimentações cênicas desenvolvidas pelos estudantes das oito linhas de estudo e as avaliações multifocais. Em relação a este último item, todos os alunos avaliam a si mesmos, uns aos outros, ao núcleo criativo a que pertencem, ao seu curso e aos próprios professores, que, por sua vez, fazem o mesmo, resultando em um processo bastante democrático.

Espera-se, assim, que todos aprendam com todos, e aprenda-se fazendo por meio da investigação e das atividades práticas. Dessa forma, estudantes com diferentes graus de experiência teatral são colocados lado a lado em todas as atividades. A pedagogia da experiência é o que motiva o aprendizado, pois os alunos produzem tudo: escrevem as peças, montam os cenários e figurinos, fazem a iluminação e a sonorização, tudo junto, cada um de acordo com seus percursos, sendo estes totalmente singulares, haja vista que a organização horizontal dos Módulos permite que os estudantes ingressem em qualquer um deles, sem predeterminação hierárquica.

Para o semiólogo Walter Mignolo (2008, p. 290), “a opção descolonial é epistêmica, ou seja, ela se desvincula dos fundamentos genuínos dos conceitos ocidentais e da acumulação de conhecimento”. Assim, a Adaap busca fundamentar essa nova epistemologia a partir das perspectivas decoloniais, que operam na via de desconstruir conhecimentos e cânones artificiais, dado que potencializam o empoderamento de grupos étnicos e sociais antes silenciados ou ignorados. Com empoderamento, ninguém tampouco algum coletivo específico precisa ser incluído dentro de nada, porque os acessos estão livres e bem pavimentados a qualquer pessoa.

Ao colocar o pensamento moderno ocidental como uma concepção abissal pautada num sistema de distinções visíveis e invisíveis, o catedrático Boaventura de Sousa Santos vai mais além ao apontar um tal nível de marginalidade ao sistema que inviabilizaria a própria inclusão forçada:

Existe, portanto, uma cartografia moderna dual: a cartografia jurídica e a cartografia epistemológica. O outro lado da linha abissal é um universo que se estende para além da legalidade e ilegalidade, para além da verdade e da falsidade. Juntas, estas formas de negação radical produzem uma ausência radical, a ausência de humanidade, a sub-humanidade moderna. Assim, a exclusão torna-se simultaneamente radical e inexistente, uma vez que seres sub-humanos não são considerados sequer candidatos à inclusão social. (SOUSA SANTOS, 2009, p. 30)

Em seu livro Compreender e Ensinar (2002), a filósofa Terezinha Azerêdo Rios, ao analisar as proposições de Evelina Dagnino sobre a emergência de uma nova noção de cidadania, tece observações bem elucidativas a esse respeito, indicando que nesse modelo, que se opõe ao liberal, “há possibilidade de não só usufruir dos direitos existentes, mas de inventar novos direitos” e que “a nova cidadania reivindica não a ‘inclusão’ no sistema político, mas o direito de participar na própria definição do sistema”.

Aqui está a chave para a compreensão de por que é relevante a Adaap propor –metodologicamente, em sua práxis pedagógica-administrativa e também como teorema sociológico – a substituição do inclusão social por acessibilidade. A ideia de inclusão presume, além da passividade, a entrada em um meio/sistema já pré-moldado, excluindo, portanto, a própria possibilidade de agentes aptos a colaborar na definição desses mesmos círculos físicos ou simbólicos.

O conceito de acessibilidade é mais pujante porque assegura as condições para a igualdade social. Pensando na dimensão da acessibilidade na geografia, pode-se tomar um exemplo simples e facilmente verificável em relatos ou reportagens sobre o assunto. Há muitas pessoas que não querem se mudar de suas comunidades ou favelas. Isso ocorre por motivos variados, seja por ligações familiares ou memórias afetivas. Desejam, sim, ter acesso a saneamento básico, iluminação apropriada, a escolas tão boas quanto as de qualquer outro bairro, a programação cultural igualmente variada, e assim por diante. Ou seja, é novamente o caso do agente externo que erroneamente vislumbra desejos ou perspectivas que lhe são estranhas e decide por conta própria as possibilidades existenciais do outro. O exemplo que o autor Alejandro Moreno dá em seu artigo Superar a exclusão, conquistar a equidade: reformas, políticas e capacidades no âmbito social é autoexplicativo.

Tenho já vinte anos de “incluído” num bairro de Petare, uma dessas comunidades que antes se chamaram de “marginais” e hoje se chamam de “excluídas”, quando são nomeadas desde fora delas mesmas, pelos incluídos no sistema. De dentro, delas mesmas, nem se consideram marginais nem excluídas, simplesmente porque essa questão não lhes pertence. De dentro se percebem como comunidades – pacíficas ou conflitivas – de conviventes. Dir-se-ia que cada bairro mais parece um povoado tradicional que um setor da cidade. Esta semelhança com o povoado é muito significativa. Da estrutura política, econômica, social e cultural da cidade, os bairros são partes de uma unidade mais ampla. De dentro, identificam-se como, e praticam, uma notável autonomia. Nem desprezam nem rejeitam a cidade, mas tampouco a engrandecem. Não percebem sua autonomia como marginalização nem exclusão, mas como uma maneira natural de praticar a convivência. (LANDER, 2005, p. 91)

A acessibilidade sempre esteve no DNA da Adaap. Entre dezenas de parcerias, pode-se destacar a colaboração com Fundação Casa do Brás, consistindo na oferta de oficinas de teatro e circo para os jovens de 12 a 21 anos que cumprem medida socioeducativa de internação, tendo por objetivo a sensibilização para a arte e aproximação com o projeto da SP Escola de Teatro, abrindo, assim, possibilidades para a profissionalização no teatro; a parceria com a Fábrica de Cultura Catavento, viabilizando o futuro ingresso de estudantes que passaram por esse projeto na SP Escola de Teatro; a cooperação com o Centro de Direitos Humanos e Cidadania do Imigrante (CDHIC), com atividades artístico-pedagógicas para crianças e adolescentes imigrantes e refugiadas da cidade de São Paulo, em particular moradores do Brás, um dos bairros com maiores índices de população imigrante, com temas como xenofobia, direitos humanos, cidadania e racismo; a parceria com a Associação de Mulheres Imigrantes Luz e Vida, com intuito de oferecer oficinas de jogos teatrais para imigrantes, em particular com vítimas de violência doméstica.

A Adaap procurou, assim, aderir organicamente as sedes da SP Escola de Teatro em suas respectivas regiões, usando como premissa a ideia de que “o espaço é formado por um conjunto indissociável, solidário e também contraditório de sistemas de objetos e sistemas de ações, não considerados isoladamente, mas como o quadro único no qual a história se dá” (SANTOS, 2006, p. 39). Não basta, contudo, manter uma situação estática de ter a escola de portas abertas sem uma comunicação eficiente e proatividade. É necessário que a instituição não seja apenas acessada, mas também acesse espaços e indivíduos. Desde 2021, por exemplo, a Adaap, com o apoio do Instituto Adus, empreende ações como a realização de processos seletivos específicos, com vagas destinadas exclusivamente para imigrantes e/ou refugiados, e também cursos de idiomas para colaboradores e estudantes ministrados pelos atendidos do instituto supracitado.

Nesse particular, destaque-se a ligação nevrálgica da questão linguística com acessibilidade e pensamento decolonial.

O “pensamento descolonial castanho” construído nos Palenques nos Andes e nos quilombos no Brasil, por exemplo, complementou o “pensamento indígena descolonial” trabalhando como respostas imediatas à invasão progressiva das nações imperiais europeias (Espanha, Portugal, Inglaterra, França, Holanda). As opções descoloniais e o pensamento descolonial têm uma genealogia de pensamento que não é fundamentada no grego e no latim, mas no quechua e noaymara, nos nahuatls e tojolabal, nas línguas dos povos africanos escravizados que foram agrupadas na língua imperial da região (cfr. espanhol, português, francês, inglês, holandês), e que reemergiram no pensamento e no fazer descolonial verdadeiro: Candomblés, Santería, Vudú, Rastafarianismo, Capoeira, etc. (MIGNOLO, 2008, p. 292)

Este último aspecto foi essencialmente relevante quando a Adaap implementou seu sistema pedagógico na criação da MT Escola de Teatro. Durante estudos para o mapeamento das artes cênicas no Mato Grosso, os pedagogos da Adaap ouviram inúmeros relatos de que os atores do Estado eram então treinados a reprimir seus sotaques originais, haja vista que os acentos de São Paulo e Rio de Janeiro eram considerados como necessários e normativos na televisão e nos palcos brasileiros, de modo a prejudicar o acesso profissionais nesses meios àqueles que ainda o mantivessem. Imediatamente, a Adaap percebeu a importância de mostrar como era importante a preservação daqueles sotaques e peculiaridades linguísticas no teatro – ainda mais num Estado composto por dezenas línguas, derivadas de cinco troncos linguísticos diferentes, muitas ainda por serem catalogadas, ou seja, um patrimônio cultural de valor inestimável. Atualmente, mesmo dentro de grandes conglomerados de comunicação, percebeu-se o pérfido preconceito que havia com muitos sotaques do Brasil, e diferentes acentos são aceitos com mais naturalidade, embora muito ainda haja para ser feito.

Tal práxis, por sua vez, conecta-se com a constituição de uma biblioteca polifônica. Hoje vários conceitos da sociologia e dos estudos culturais, por exemplo, têm alta capilaridade entre os jovens. Existe uma rejeição – perfeitamente compreensível para quem está antenado com as pautas da contemporaneidade – ao cânone ocidental como modelo referencial universal e único. É imprescindível que a biblioteca tenha obras teóricas das mais diversas vertentes, não faz sentido em pleno século XXI manter um acervo que gravite unicamente ao redor da suposta racionalidade eurocêntrica colonizadora e sua consequente mitologia branca autorreflexiva como logos. Se o ato de ler já é cada vez mais desvalorizado entre os jovens, é essencial ter uma biblioteca que esteja conectada aos seus desejos e perspectivas de leitura. Desse modo, a equipe tem buscado, ao longo dos anos, adquirir obras que valorizem e reconstruam nossas genealogias multiétnicas para a geração de um conhecimento verdadeiramente polissêmico e consonante aos anseios e visões de mundo das novas gerações.

Nessa mesma mirada, a Adaap tem orgulho de ser a pioneira no país a implementar um amplo Programa de Empregabilidade de Travestis e Transexuais, iniciado desde a fundação da SP Escola de Teatro como equipamento da Secretaria de Cultura, Economia e Indústria Criativas do Estado de São Paulo. A iniciativa reservava as vagas da recepção da instituição exclusivamente à esta população em situação de vulnerabilidade social.

[…] pode-se considerar que a identificação é sempre um processo ambivalente. Identificar-se com um gênero nos termos dos regimes contemporâneos de poder implica identificar-se com um conjunto de normas realizáveis ou não, cujo poder e condição precedem as identificações por meio das quais se intenta insistentemente se aproximar. (BUTLER, 2019, p. 223).

Esse postura quebra com preconceitos enraizados, tornando os acessos disponíveis e o tecido social mais democrático. Até hoje foram dezenas de funcionárias, todas com ótimo desempenho, nessa função, prática que antecipou em vários anos a popularização de cotas dentro das empresas para esse grupo, hoje algo usual.

Dentro de uma organização sistêmica, contudo, é fundamental que as condutas estejam inter-relacionadas, jamais isoladas. É por isso que essas funcionárias tiveram e ainda têm a oportunidade de dispor de períodos, em horário comercial, para cursar a universidade. Como a equidade é uma condição imperativa para a Adaap é evidente que tais programas de aperfeiçoamento profissional também são direitos de todos os outros funcionários. São inúmeros exemplos de profissionais que obtiveram títulos de mestrado e doutorado graças a isso.

Com esse entendimento amplo de acessibilidade, é incontornável que a Adaap também desenvolva diferentes iniciativas que contemplem pessoas com deficiência visual e auditiva, para que todas consigam acessar os conteúdos oferecidos na SP Escola de Teatro. Procura-se disponibilizar as mesas de discussão YouTube com audiodescrição, iniciativa desenvolvida com participação do estúdio de som e dos discentes da linha de estudo de sonoplastia, geralmente como atividade de contrapartida Bolsa-Oportunidade. Na medida do possível, privilegia-se também a criação conteúdos institucionais e pedagógicos publicados nas versões texto e áudio, para fomentar o acesso a  leitores e ouvintes.

Nas redes sociais, as postagens são acompanhadas pela descrição da imagem estimulando os produtores de conteúdo a descreverem o que está na imagem publicada. Essas informações são reproduzidas em aplicativos de audiodescrição destinados a deficientes visuais. Outra iniciativa para ajudar quem tem parte da visão comprometida é o aumento da fonte nos sites ligados à Adaap, de modo a tornar a visualização fica mais fácil.

A perspectiva da interseccionalidade é outra ferramenta que embasa a proposição da Adaap. O conceito cunhado por feministas negras nos anos 1980 tornou-se uma instrumento conceitual para ativistas comprometidas com análises que elucidam os processos de interação entre relações de poder e categorias como classe, gênero e raça.

O que se entende por inclusão pressupõe que agentes historicamente marginalizados sejam imersos em um sistema inerte, ou seja, que ainda preserva o status quo, muitas vezes milenares e alheios aos marcos civilizatórios. A acessibilidade, por outro lado, com seu aspecto de agência, pode ser o dispositivo para um novo modelo de sociedade, matricial e rizomático, pautado pela isonomia de direitos e oportunidade.

Recomenda-se, pela interseccionalidade, a articulação das clivagens identitárias, repetidas vezes reposicionadas pelos negros, mulheres, deficientes, para finalmente defender a identidade política contra a matriz de opressão colonialista, que sobrevive graças às engrenagens do racismo cisheteropatriarcal capitalista. Sendo assim, não apenas o racismo precisa ser encarado como um problema das feministas brancas, mas também o capacitismo como problema das feministas negras cada vez que ignoramos as mulheres negras que vivem a condição de marca física ou gerada pelos trânsitos das opressões modernas coloniais: sofrendo o racismo por serem negras, discriminadas por serem deficientes. Portanto, na heterogeneidade de opressões conectadas pela modernidade, afasta-se a perspectiva de hierarquizar sofrimento, visto como todo sofrimento está interceptado pelas estruturas. (AKORITIRENE, 2019, p. 45)

Para o professor Cristiano Rodrigues, a interseccionalidade “estimula o pensamento complexo, a criatividade e evita a produção de novos essencialismos” (2013, p. 10). Certamente pode ser um recurso poderoso para que a emancipação individual brote em meio a dogmas, tecidos sociais rígidos  ou ambientes autocráticos. Note-se que, como observa Žižek, mesmo a liberdade em altos níveis pode derivar no impasse da sociedade da escolha.

Hoje, há múltiplos investimentos ideológicos na questão da escolha, muito embora os cientistas do cérebro ressaltem que a liberdade de escolha é uma ilusão; nós nos vivenciamos “livres” simplesmente quando somos capazes de agir do modo que nosso organismo determinou, sem nenhum obstáculo externo para atrapalhar nossa propensão íntima. Os economistas liberais enfatizam a liberdade de escolha como ingrediente fundamental da economia de mercado: de certo modo, quando compramos coisas, estamos votando com nosso dinheiro. Pensadores existencialistas “profundos” gostam de empregar variações sobre o tema da escolha existencial “autêntica”, em que está em jogo o próprio âmago de nosso ser – uma escolha que exige envolvimento existencial total, em contraste com as escolhas superficiais desta ou daquela mercadoria. Na versão “marxista” do tema, a multiplicidade de escolhas com que o mercado nos bombardeia só serve para obscurecer a ausência de escolhas realmente radicais relativas à estrutura fundamental da sociedade. Entretanto, há uma característica ostensivamente ausente nessa série, a saber, a injunção de escolher quando nos faltam as coordenadas cognitivas básicas necessárias para fazer uma escolha racional. (ŽIŽEK, 2011, p. 61)

Ou seja, a acessibilidade não resolve as complexas aporias contemporâneas, ainda a demarcar os gestos coletivos em contraposição à liberdade dos indivíduos, porém favorece a criação de uma matriz existencial em que esferas econômicas e políticas transcendam para territórios sociais e simbólicos multidimensionais. É na somatória e valorização de nossas semelhanças e diferenças que os possíveis caminhos para as futuras gerações poderão ser trilhados.

 

Referências

AKOTIRENE, C. Interseccionalidade. São Paulo: Pólen, 2019.

ANDERSON, E. Qual é o sentido da igualdade?. Revista Brasileira de Ciência Política, nº15. Brasília, setembro-dezembro de 2014. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/0103-335220141507

BOURDIEU, P. Sobre o estado. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

BUTLER, J. Corpos que importam: os limites discursivos do “sexo”. São Paulo: N-1 edições, 2019.

LANDER, E. (org.) A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latinoamericanas. Colección Sur Sur, CLACSO, Ciudad AutÛnoma de Buenos Aires, Argentina. Setembro 2005. Disponível em https://biblioteca-repositorio.clacso.edu.ar/handle/CLACSO/14084. Acesso em 11 jul. 2023.

MIGNOLO, W. (org.) Desobediência epistêmica: a opção descolonial e o significado deidentidade em política. Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Literatura, língua e identidade, no 34, 2008.

RODRIGUES, C. Atualidade do conceito de interseccionalidade para a pesquisa e prática feminista no Brasil. Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. p. 10. Disponível em: https://poligen.polignu.org/sites/poligen.polignu.org/files/feminismo%20negro2.pdf. Acesso em: 13 jul. 2023.

SANTOS, M. A Natureza do Espaço: Técnica e Tempo, Razão e Emoção. 4. ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2006.

SOUSA SANTOS, B. Epistemologias do sul. Portugal: Biblioteca Nacional, 2009.

ŽIŽEK, S. Primeiro como tragédia, depois como farsa. Tradução: Maria Beatriz de Medina. São Paulo: Boitempo , 2011.

[1] Sem excluir, contudo, graças à grande reputação da Escola, alunos já graduados, com mestrado ou mesmo doutorado, que desejavam aprofundar seus conhecimentos dentro uma perspectiva prática; assim como estudantes estrangeiros ou de outros estados do Brasil.

 

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
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