NA SUÉCIA | Neve no Brasil: um silêncio que se recusa a morrer

O grupo Darling Desperados, fundado em Malmö em 1987, foi – dizem crítica e público saudoso – “um sopro, um rasgo no tecido de um tempo, pequenas tempestades que mudaram a paisagem de uma cidade inteira”.

No início dos anos 1990, quando ainda era possível acreditar que a arte podia não apenas provocar, mas também consolar, eles chegavam ao palco como quem chega para incendiar. Com irreverência, coragem e uma inquietação que não se deixava domesticar.

Suas fundadoras, Ulrika Malmgren e Katta Pålsson, levaram essa chama para Estocolmo, cada uma com suas próprias inquietações. Ulrika formando jovens artistas como professora na Escola de Artes Dramáticas, Katta mantendo viva a fúria criadora também por trás das cortinas, como produtora. E como é bonito quando a inquietação insiste em voltar. Alguns anos atrás, o grupo ressurgiu — talvez mais maduro, mas não menos faminto.

É nesse retorno que nasce Neve no Brasil – Anna, Você Pode Ficar, que escrevi com Rodolfo García Vázquez e que ele também dirigiu. Uma história que nos atravessou antes mesmo de se tornar cena. Uma performance sobre duas irmãs gêmeas, Anna e Jonna, presas a uma ilha e a um passado que ainda dói. E uma correspondência misteriosa que vem do Brasil, como uma brisa morna cortando a neve.

Anna, interpretada por Ulrika, é uma mulher que se lembra das luzes do circo, mas já esqueceu como é estar viva. Com sua irmã Jonna, interpretada por Katta, ensaia uma fuga. Da miséria, do silêncio, da memória. Mas as palavras não ditas entre elas pesam mais do que qualquer mala. E nós, espectadores, nos tornamos cúmplices dessa tentativa de reencontro. Com a irmã, com o próprio corpo, com o que resta de sonho.

Bent Braskered e Staffan Göthe, gigantes da cena sueca, emprestam suas presenças a essa ilha varrida pelo vento. Göthe, com sua trajetória que atravessa dramaturgia, direção e cinema, e Braskered, com uma intensidade que cabe tanto na tela quanto no palco, nos lembram que teatro, quando bem feito, não se esquece nunca.

No palco, essa irmandade tragicômica dança entre o grotesco e o sublime, como só a vida sabe fazer. Cada gesto parece dizer. Não basta sobreviver, é preciso lembrar como se vive. E essa centelha, por mais frágil que pareça, se recusa a se apagar.

A peça teve suas primeiras apresentações em setembro do ano passado, no Moriska Paviljongen, na Suécia, e agora inicia sua viagem. Em novembro, aporta no Unga Klara, em Estocolmo, e depois segue em turnê pelos EUA, Argentina e Brasil.

Talvez seja isso o teatro: a capacidade de transformar uma ilha em vento, um trauma em luz, uma carta perdida em horizonte. Talvez seja isso o Darling Desperados. A lembrança de que ninguém pertence totalmente a lugar nenhum, mas a centelha continua acesa. Mesmo quando só resta neve.

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
Post criado 1882

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