O filme “Uma Canção de Amor”, de Jean Genet, mostra dois prisioneiros na década de 1950, cada um em sua própria cela, tentando se comunicar num jogo erótico —por um buraco estreito, eles trocavam a fumaça de um cigarro de uma boca a outra, com ajuda de um fino bastão.
Na nova peça online do grupo Os Satyros, a 12ª feita virtualmente pela companhia, esses dois homens criados pelo autor maldito estão confinados em duas telas do Zoom, e é por essa plataforma que nutrem seus sonhos mais íntimos.
O grupo, que decidiu manter a programação virtual em 2021, já montou “Uma Canção de Amor” presencialmente, em 2018.
Eles retomaram o projeto num momento em que se sentem mais familiarizados com as plataformas digitais. Segundo Rodolfo García Vázquez, que assina a direção do espetáculo com Gustavo Ferreira, estar mais à vontade com as novas técnicas ajudou a preservar a atmosfera da primeira vez que apresentaram o espetáculo.
“Uma Canção de Amor” costura uma série de obras de Genet, como “O Balcão” e “As Criadas”, com o filme homônimo que, na época em que foi lançado, chegou a ser censurado por ter conteúdo homossexual e erótico.
Na versão d’Os Satyros, os protagonistas são um homem de meia idade e outro de 80 anos, vividos por Henrique Mello e Roberto Francisco. O espectador se torna quase o vigia daquela prisão, já que também os observa, em parte do espetáculo, por uma fresta. Mas o enredo de Genet, que quase seduz o público com o crime, como num chamado para se estar ao lado dos malditos, continua lá.
A montagem é também uma homenagem aos 50 anos de carreira de Roberto Francisco, que também esteve numa montagem emblemática de “O Balcão” em 1969, com Ruth Escobar e Victor García.
“Quando trabalhamos a obra no presencial, ela tinha muito impacto. Era um ambiente muito simples, mas sufocante”, afirma Rodolfo Vázquez. “Mesmo sendo celas, o que dividia esses dois espaços no palco eram uma tela transparente, leve, e o que ficava era mais uma sensação de opressão e escuridão.”
No Zoom, a carga do isolamento parece muito mais presente que a da escuridão —inclusive porque muitas das cenas são mais iluminadas e, numa sobreposição dos atores ao vivo com pequenos filmes gravados previamente, lançam o público para os devaneios dos atores.
No filme de Jean Genet, os prisioneiros parecem ter muito mais mobilidade nas pequenas celas da prisão do que no cenário restrito da versão virtual da obra. Henrique Mello e Roberto Francisco também parecem se espelhar nessa versão d’Os Satyros, quase num jogo de se olhar no espelho —ou na tela do Zoom– e se ver mais velho, ou mais jovem.
Aliás, como tem acontecido em outras peças da companhia, são várias as técnicas usadas durante a transmissão ao vivo da casa dos atores. Eles se valem de efeitos de luz, filtros digitais e de sobreposição de imagens dos atores gravadas no próprio teatro.
“Os prisioneiros criam códigos para se comunicarem mesmo estando em isolamento —mandam bilhetes, têm códigos, estabelecem comunicação. Isso, para nós, foi uma associação imediata, como se, dentro da tela do Zoom, a gente criasse códigos próprios para manter viva a nossa socialidade”, avalia Vázquez.
Fonte: Folha de S.Paulo, 28 de maio de 2021